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OS VAMPIROS SE TORNAM POPULARES

ESPECIAIS/VE VAMPIROS

autorGilberto Schoereder
publicado porGilberto Schoereder
data23/02/2024
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O período entre a publicação de O Vampiro, de Polidori, e de Drácula, de Bram Stoker, consolidou a popularidade dos vampiros na literatura de terror.

J. B. /Pixabay.
Ilustração de J. B. /Pixabay.

Já em 1820, um ano após a publicação de O Vampiro, surgiu na França uma suposta “sequência” à obra de Polidori, com o título Lord Ruthwen, ou Les Vampires, atribuída a Cyprien Bérard, um romance em dois volumes que ampliava as viagens do vampiro Ruthven – aqui rebatizado com um “w” – por vários países europeus e até chegando a Bagdá, sempre atacando e sugando donzelas.
Houve uma polêmica com relação ao autor, alguns entendendo que, na verdade, era Charles Nodier, na época já um escritor consagrado, mas essa questão foi posteriormente esclarecida e o autor tido mesmo como Bérard.
Mas o próprio Nodier também embarcaria na “onda vampírica”, no mesmo ano, adaptando a história de Polidori para o teatro e, segundo Martha Argel e Humberto Moura Neto, tratava-se de uma versão que acentuava o aspecto erótico-amoroso. “O Ruthwen teatral”, dizem os pesquisadores, “era ainda mais influenciado por Byron do que o Ruthven literário. Não é o típico vilão do melodrama, sombrio e declaradamente perverso do início ao fim, mas um anti-herói romântico, em que o sentimento pela mocinha luta contra seu próprio instinto monstruoso. É interessante notar, portanto, que a ambiguidade característica do vampiro atual (que assumiria força total na década de 1970) já acompanhava o vampiro desde muito cedo, desde a estreia nos palcos, apenas um ano após seu nascimento como personagem literário”.
J. Gordon Melton disse que, ao adaptar a história para o teatro, Nodier “Precisava simplesmente alterar o final da história de Polidori para assegurar à sua plateia que as forças do bem ainda estavam sob controle”. E, apesar das críticas iradas de setores conservadores cristãos, a peça foi um sucesso de público, e inaugurou uma “onda” de peças com vampiros em Paris, ainda que geralmente fossem comédias ou paródias.
Segundo informações, ainda em 1820 pelo menos cinco peças com vampiros foram encenadas em Paris. No mesmo ano, o vampiro Lord Ruthven estreou nos palcos de Londres, em peça de James Robinson Planché, com o título The Vampire; or The Bride of the Isles. Segundo Argel e Moura Neto, “O vampiro de Planché oferecia violência, crueldade e sexo, que caracterizavam o lado negro do melodrama, e isso fez com que a ameaça da censura inglesa pairasse constantemente sobre ele. Trazia ainda o herói dividido, numa luta interna em que sua natureza e sua ordem moral se confrontavam”, um aspecto que se distanciava tanto do folclore quanto no texto original de Polidori, no qual o vampiro não tinha dilemas e não era punido.

                                                                                            Ilustração de Pete Linforth/ Pixabay.

O escritor e compositor alemão E.T.A. Hoffmann (1776-1822) foi um dos autores mais importantes no desenvolvimento das histórias de terror, fantasia e até mesmo da ficção científica, e também não ficou de fora da moda dos vampiros na Europa. Em 1821, ele publicou A Vampira (Vampirismus, também conhecido como Aurelia, ou La Vampire. Em português, no livro Histórias de Vampiros. Ed. Estampa, 1974), tida como a primeira história a apresentar uma vampira na literatura em prosa. E, segundo alguns críticos, a história iria inspirar o conto Carmilla, de Sheridan Le Fanu.
J. Gordon Melton entende que a personagem que a história apresenta é mais algum tipo de demônio e não necessariamente uma vampira. No caso, é a condessa Aurélia que, à noite, abandona o marido para alimentar-se de cadáveres no cemitério. Argel e Moura Neto disseram que “Aurelia não era uma morta-viva nem se alimentava de sangue, mas, de qualquer modo, foi o primeiro personagem feminino na prosa com uma condição vampírica”.
Além de adaptar Polidori para o teatro, Charles Nodier escreveu outras histórias envolvendo vampiros, direta ou indiretamente, e, segundo Malton, foi ele quem introduziu o vampiro na literatura romântica francesa. “A romântica exploração do ser interior”, disse Melton, “muitas vezes com a ajuda de drogas para alterar a mente, logo encontrou o aspecto negativo da psique humana. O vampiro surgiu como um símbolo do lado negro da natureza humana e a maioria dos românticos franceses o utilizaram nesta ou naquela ocasião”.
Assim, em 1821, Nodier escreveu o conto Smarra, ou Os Demônios da Noite (Smarra ou les Démons de la Nuit. Publicado em português em Smarra, ou Os Demônios da Noite. Ed. Estampa, 1972). A história faz parte de uma série desenvolvida por Nodier, relacionada a sonhos e, segundo J. Gordon Melton, ao uso do ópio, que proporcionava uma porta para outro mundo. O conto narra a aventura de Lorenzo, personagem que teve um encontro com um vampiro, ainda que fosse uma criatura espiritual, existente no mundo dos sonhos. Em 1822, Nodier ainda publicou Infernaliana, volume que reuniu relatos “verídicos” e ficcionais de vampiros.

(Editora Wish, 2022).

Outra vampira surgiu em A Morta Apaixonada (La Morte Amoreuse, 1836. Também publicado como A Morte Apaixonada, em Avatar e outros contos fantásticos, Ed. Estampa, 1974), de Théophile Gautier. Narra a história do padre Romuald que, no dia de sua ordenação, encontra uma mulher linda na igreja e ela lhe faz uma proposta “com os olhos”, prometendo que se ficar com ela, ele será mais feliz que o próprio Deus no Paraíso. Em seguida, alguém lhe entrega um cartão com os nomes Clarimonde e Palácio Concini.
Sem conseguir esquecer a imagem da mulher, Romuald ouve do padre Sérapion a lenda a respeito de Clarimonde, que morreu recentemente, e não pela primeira vez. Eventualmente, Clarimonde aparece no quarto de Romuald, e eles viajam para Veneza e passam a viver juntos. E, claro, Romuald acaba descobrindo que ela é uma vampira, e que é mantida viva e bela com o sangue de Romuald.

Ilustração de Eugène Decisy a partir de aquarela de Paul Albert, para A Morta Apaixonada (A. Romagnol/ 1904).

A história é considerada entre as melhores de vampiros do período, abordando uma série de temas paralelos, além do mais óbvio, as fronteiras entre a vida e a morte. Em diversas passagens, a narração – feita pelo próprio Romuald, já velho – utiliza imagens oníricas, com o personagem constantemente sentindo-se como se estivesse em um sonho, ou pesadelo. E claramente aborda a questão da castidade dos padres em contraste com seu desejo humano pela carne e o sexo, que a vampira oferece livremente, invertendo o papel de sedução que geralmente era atribuída aos vampiros homens.
Jess Nevins disse que Clarimonde (um dos títulos pelos quais o conto ficou conhecido nos EUA) “(...) é outro dos clássicos de Gautier. A narrativa não é tão exuberante e ornada quanto One of Cleopatra’s Nights (1838), mas ainda é habilmente descritiva, ainda maravilhosamente visual, e ainda sensual, tanto em termos de erotismo e na criação de impressões nos sentidos dos leitores. A história, tão admiravelmente imaginada e contada, é carregada de sexo e desejo, mas não de uma forma perigosa e não natural, apesar do estado de morta-viva de Clarimonde”.

Clarimonde e Romuald, em ilustração de Eugène Decisy a partir de aquarela de Paul Albert, para A Morta Apaixonada (A. Romagnol/ 1904).

Segundo Nevins, o conto é uma história de terror, mas é muito mais uma história de amor. E, ao contrário de alguns críticos, Nevins entende que o conto se encaixa perfeitamente na tradição das histórias fantásticas da primeira metade do século 19, retratando uma mulher sobrenatural como um ser amigável. Para o crítico, foi apenas na segunda metade do século que as mulheres sobrenaturais começaram a ser rotineiramente retratadas como “femme fatale”. Ele entende que o conto foi o primeiro a enfatizar os aspectos sexuais da alimentação dos vampiros.
Além disso, a história trabalha com o conceito de que “Ser um vampiro não faz de Clarimonde automaticamente má, e fica claro que as condenações do padre a ela surgem de sua própria misoginia mais do que de um julgamento preciso de seu caráter”.

Romuald, lembrando-se de seu amor perdido, em ilustração de Eugène Decisy a partir de aquarela de Paul Albert, para A Morta Apaixonada (A. Romagnol/ 1904).

Martha Argel e Humberto Moura Meto, por outro lado, entenderam que a vampira Clarimonde “(...) pode ser traçada como decisiva para a consolidação da femme fatale, que teve ainda como ícones e modelos Lilith, Salomé, Messalina, Cleópatra e a cigana Carmen”. Eles dizem que a morta perturba tanto o padre Romuald que ele já não sabe se é um padre sonhando com a devassidão ou um devasso sonhando que é um padre. Assim, segundo os críticos, Gautier introduziu um tema que seria muito abordado pelos escritores na segunda metade do século 19, ou seja, “(...) a sexualidade da mulher interferindo com as aspirações espirituais do homem; a luta entre o prazer, os apetites mundanos e o Sonho de um lado, e do outro a castidade, a privação e a Realidade”.

(Ignacio Hills Press/ 2009).

Vários contos continuaram a ser produzidos nos anos seguintes, inclusive alguns de Edgar Allan Poe que, segundo alguns críticos, “têm temática vampírica”, mas que certamente não têm relação com o tema específico da literatura vampírica. Mais importante, talvez, tenha sido o conto Spalatro: From the Notes of Fra Giacomo, publicado de forma anônima em Dublin University Magazine, em 1843, e posteriormente reconhecido como sendo de autoria de Sheridan Le Fanu. A história é importante por apresentar elementos que, mais tarde, seriam desenvolvidos mais apropriadamente em Carmilla. Aqui, ele apresenta um bandido que se apaixona por uma mulher morta que bebe sangue e, segundo os críticos, assim como ocorre em Carmilla, a vampira não chega a ser apresentada de uma forma totalmente negativa.

                                                                  Página frontal de uma reimpressão de Varney, The Vampire (1845).

Uma obra que tornou o vampiro bastante popular foi Varney, O Vampiro; ou O Banquete de Sangue (Varney, the Vampire; or, the Feast of Blood. No Brasil, o primeiro volume foi publicado pelo Sebo Clepsidra, contendo os primeiros 47 capítulos, do total de 109, em 552 páginas), de James Malcolm Rymer, publicado em fascículos entre 1845 e 1847. A publicação surgiu em panfletos, conhecidos como “penny dreadfuls”, também chamados “penny blood”, histórias envolvendo mistérios e muitas aventuras, vendidos por um penny e, portanto, bem acessíveis. Ainda em 1847, foi publicado em forma de livro, com mais de oitocentas páginas.
Martha Argel e Humberto Mura Neto disseram que a obra “Foi a primeira peça literária vampírica que atingiu de fato o grande público, oferecendo-lhe sexo, violência e suspense. Com todos os seus problemas e limitações, esse penny blood contribuiu de forma notável para a difusão da imagem do vampiro. Dado o seu alcance, foi fundamental para fixar estereótipos que hoje são indissociáveis das tramas vampíricas”.
Como a obra foi muito extensa, certas cenas foram repetidas muitas vezes, reforçando padrões que seriam seguidos nos anos seguintes, inclusive pelo cinema do século 20, como o vampiro que entra no quarto da jovem (ou, às vezes, nem tão jovem) à noite para sugar seu sangue, os aldeões que se reúnem para atacar o vampiro, a noção das presas pontiagudas enterradas no pescoço das vítimas. E, segundo os críticos, ainda trouxe em uma de suas capas a primeira associação entre o vampiro e os morcegos, algo que não existia nas lendas e no folclore.
J. Gordon Melton diz que a obra “(...) serviu como importante elemento transicional entre o relato original sobre vampiros no início do século 19 e as obras de Sheridan Le Fanu e Bram Stoker”. Geralmente, a história é tida pelos críticos como inconsistente e confusa, seguindo a vida (ou não-vida) do vampiro Sir Francis Varney, que às vezes parece ser movido por interesses financeiros, outras vezes por vingança, atacando constantemente membros da família Bannerworth, com a qual ele pode ou não ter relação. Em determinado momento, ele chega a dizer que sua condição vampírica surgiu devido a uma maldição por ter matado seu próprio filho.
Melton ressaltou que “Varney foi condenado pelos críticos modernos como mal escrito e um tanto quanto caótico. Não era excelente literatura, nem mesmo um bom romance”, mas “Atingiu um objetivo um tanto limitado de forma espetacular, tornando-se uma das mais bem-sucedidas ‘revistas terríveis de 1 centavo’ da metade do século”.
Jess Nevins não foi tão crítico com o livro, dizendo que apesar de suas muitas falhas, é surpreendentemente legível. Mas por outro lado, aponta as muitas falhas, como ter vários capítulos apenas para encher linguiça, diálogos redundantes, cenas que se repetem com poucas alterações, e, como o autor recebia o seu pagamento pelo número de palavras que escrevia, frequentemente seguia por narrativas paralelas com pouco ou nada a ver com a história principal, apenas para estender ao máximo a história. Mas Nevins diz que apesar de tudo isso, “(...) Varney também tem muitas das virtudes do formato penny, e num grau maior do que o normal. O estilo de Rymer envelheceu apenas levemente, e Varney é geralmente legível. As descrições de Rymer são mais do que adequadas”, e o autor consegue manter um bom ritmo nas cenas de ação, “(...) e frequentemente obtém uma atmosfera intensa, prolongada e tensa”.

                                                                                                                                                                                          (Wordsworth Editions/ 2012).

Para Nevins, talvez o mais surpreendente seja o fato de que o personagem Varney é convincente. “Ele faz sua primeira aparição como um monstro, um dos poucos monstros realmente sobrenaturais na literatura gótica ou nos penny bloods ou penny dreadfuls, mas logo ele é apresentado como Sir Francis Varney, e é nessa identidade que o leitor chega a conhecê-lo”. E Rymer dá ao personagem uma profundidade de caracterização que é surpreendente não apenas nos penny bloods, “(...) mas também surpreendente nos romances de terror do século 19 com personagens monstros similares”. Para o crítico, Varney tem mais profundidade até mesmo que a Carmilla, de Le Fanu, a Criatura de Frankenstein, e que o protagonista de Drácula. “Varney se coloca como o mais complexo e emocionalmente identificável personagem monstro do século 19”.

(Via Leitura/ 2018).

E a citada Carmilla foi a personagem da história com o mesmo título, escrita por Sheridan Le Fanu em 1872 (No Brasil, curiosamente com o título masculino de O Vampiro de Karnstein e outras histórias, e posteriormente como Carmilla, a Vampira de Karnstein, por várias editoras). Não foi a primeira personagem feminina vampira, como dissemos anteriormente, mas a história geralmente é apontada como tendo grande influência em muitas obras posteriores, em particular as adaptações para o cinema dos anos 1960, em um subgênero que ficou conhecido como “vampiras lésbicas”.
A história foi publicada em capítulos na revista The Dark Blue, entre 1871 e 1872, e na coletânea In a Glass Darkly (1872), com narração da protagonista, a jovem Laura, vivendo uma existência solitária com seu pai em um castelo da Estíria, região da Áustria, na fronteira com a Eslovênia. Em sua narrativa dos momentos estranhos que viveu anos antes, ela começa contando de uma estranha visão que teve aos seis anos, quando uma linda mulher teria aparecido em seu quarto.
Posteriormente, ela conta como a jovem Carmilla entrou em suas vidas, passando a viver no castelo após um acidente nas proximidades, e como se aproximou de Laura, exercendo uma imensa atração nela, apesar da jovem passar por momentos em que parece estar totalmente alheia ao que acontece à sua volta.
Ao mesmo tempo, surgem notícias fragmentadas de uma estranha doença que ataca jovens da região, debilitando-as e, eventualmente, matando-as. Nas proximidades existem as ruínas do castelo de Karnstein, onde viveu uma família que se diz ter sido amaldiçoada, especialmente a Condessa Mircalla. Laura e seu pai recebem uma série de pinturas pertencentes à família e que foram restauradas, e entre elas está uma pintura de Mircalla, datada de 1698, que tem exatamente as mesmas feições de Carmilla.

Ilustração de David Henry Friston, para a edição de Carmilla em The Dark Blue (1872).

Para os leitores modernos da história, nesse ponto já está muito claro que se trata da mesma pessoa, com uma pequena alteração do nome, da mesma forma que alguns filmes de vampiros dos anos 1960 e 1970 utilizaram a variação Alucard para Drácula. Mais de um século de convenções literárias e cinematográficas referentes aos vampiros ajudam a definir uma série de eventos na história.
Eventualmente, um general que teve sua filha atacada e morta pela vampira Carmilla/ Mircalla, que na época atendia pelo nome de Millarca, parte em busca da assassina, encontrando sua morada eterna em um local escondido nas ruínas de Karnstein.
Martha Argel e Humberto Moura Neto disseram: “Herdeira da Clarimonde, da Aurelia de Hoffmann e das mortas-vivas da poesia romântica, a vampira Carmilla é bela, insidiosa e suave, e sua determinação em cumprir seus vis intentos é apresentada como um grande perigo, que deve ser combatido a qualquer custo, pela união das forças e saberes de vários homens”. E os pesquisadores lembram que um dos aspectos que chamou a atenção dos leitores e que já foi alvo de incontáveis análises literárias, é a predileção de Carmilla por mulheres. “Sua sexualidade é abordada com a discrição própria de então, mas não há como negar a atração pela narradora Laura, ou o fato de só atacar mulheres. Apesar da tendência moderna em ver uma certa apologia ao homoerotismo, na verdade o conto encaixa-se em um cenário mais amplo. Tanto a sexualidade feminina agressiva quanto a homossexualidade eram vistas pela sociedade vitoriana como uma degeneração dos códigos morais e sociais. Essa concepção foi associada por Le Fanu aos elementos da literatura vampírica, dando às preferências e aos hábitos de sua vampira uma conotação maléfica e indesejada, e inserindo a femme fatale num contexto moralizante”.

Ilustração de Michael Fitzgerald, para a edição de Carmilla em The Dark Blue (1872).

J. Gordon Melton disse que em Carmilla é possível observar o mito do vampiro literário e as transformações que foram sendo acrescentadas, como o conceito de que as pessoas podiam se transformar em vampiros após cometerem suicídio, ou caso tivessem sido mordidas por um vampiro em vida. No entanto, a jovem Laura, apesar de ter sido constantemente mordida por Carmilla, não se transforma.
O que fica claro é que Le Fanu entendia que o vampiro era um morto que retornava à vida – ou algo parecido com vida – e não um espírito. Ainda assim, não há qualquer tentativa de explicar como Carmilla conseguia retornar ao seu túmulo sem mover a terra. E, como praticamente todos os críticos notaram, Melton também ressaltou as “(...) conotações mais que superficiais sobre o lesbianismo”, completando que “Nas histórias de horror, de um modo geral, os autores puderam retratar os temas sexuais em formas que não estariam à sua disposição por outros meios”, o que talvez não seja uma observação muito exata.
Para Jess Nevins, Carmilla é significativa não apenas como literatura, mas é uma excelente história de terror, convincente, “(...) e o mistério do que Carmilla é e como tudo será resolvido mantém o interesse do leitor mesmo quando ele já conhece o segredo de Carmilla”. Ainda assim, diz Nevins, a história foi escrita na forma de uma lenda popular, com o status quo moral expresso pelo final da história, com a salvação da inocente Laura e a destruição do monstro Carmilla.
Um dos destaques, segundo o crítico, é o clima de sonho, ou pesadelo, criado por Le Fanu, em particular durante os ataques noturnos de Carmilla, às vezes assumindo a forma de um gato, e não um morcego, como viria a ser comum nas imagens vampíricas. “(...) suas caracterizações e cenários”, diz Melton, “são relativamente realísticos e desprovidos de melodrama. Isso se afasta da maioria das histórias de vampiros anteriores”.

Ilustração de David Henry Friston, para a edição de Carmilla em The Dark Blue (1872).

Nevins também destaca o aspecto sexual da história. “A atmosfera erótica da história vale a pena notar. O lesbianismo em Carmilla é tão flagrante para ser um subtexto. O público de Le Fanu ficou chocado pela forma relativamente explícita dele fazer das mulheres, e não dos homens, o foco dos desejos de Carmilla. O lesbianismo da história não está na predileção de Carmilla em morder os seios das vítimas, mas especialmente em sua atração por mulheres, em seus beijos e carícias nelas, no fato dela segurar suas mãos e acariciá-las, e parecer genuinamente apaixonar-se por elas, e agir como muitas jovens mulheres da época Vitoriana agiam quando formavam suas apaixonadas ‘amizades românticas’. (...) Pode-se argumentar que as ‘amizades apaixonadas’ das mulheres Vitorianas eram, na realidade, geralmente sexualizadas, de modo que Carmilla foi chocante não por ter sexualizado o que normalmente não era sexual, mas porque pegou uma característica da vida Vitoriana sobre a qual a maioria das pessoas concordou em não falar a respeito, e a colocou no papel”.
Nevins diz que Clarimonde, de Gautier, foi a primeira história de vampiro a enfatizar os aspectos sexuais da alimentação do vampiro, mas Carmilla foi a primeira história de vampiro com um tema lésbico, e Le Fanu tratou a vampira lésbica de modo simpático e até mesmo transgressivo. E, além de considerar a obra a história de vampiro mais bem escrita do século 19, inclusive muito melhor do que Drácula, ele apresenta uma série de aspectos da história que certamente influenciaram Bram Stoker na composição de sua obra mais conhecida: a utilização do cenário da Europa Oriental; uma Condessa morta-viva – que apareceu em O Convidado de Drácula (Dracula’s Guest), o primeiro capítulo excluído de Drácula; o instruído e conhecedor caçador de vampiro, já que o Van Helsing de Stoker parece ter sido principalmente baseado no Dr. Hesselius; vários dos poderes de Carmilla, como sua força superior, sua capacidade de assumir outras formas; e o fato de dormir em um caixão.

Apesar de várias histórias de vampiros terem sido escritas entre Carmilla e o surgimento de Drácula, aparentemente nenhuma atingiu a importância da história de Le Fanu. Os pesquisadores Martha Argel e Humberto Moura Neto citam vários contos e romances no período, mas nenhuma teve o mesmo destaque.
Mas o impulso final para a transformação das histórias de vampiros viria mesmo em 1897, com o Drácula, de Bram Stoker.