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O Mundo Vazio Que Nos Espera

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autorGilberto Schoereder
publicado porGilberto Schoereder
data29/08/2011
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A Rocco lança a sátira cáustica “Uma história de amor real e supertriste”, de Gary Shteyngart.

Se você é uma das pessoas que acham que hoje em dia se lê muito pouco, pensa-se ainda menos, e se gasta muito tempo falando, ouvindo e vendo futilidades que nada acrescentam à existência, prepare-se! A leitura de Uma história de amor real e supertriste traz uma aterrorizante, ainda que engraçada e cáustica visão de como as coisas podem ficar muito pior.
A sátira à sociedade atual imagina um futuro próximo em que os Estados Unidos estão à beira de um colapso total, com os cidadãos praticamente analfabetos e completamente voltados para o consumo e para seus próprios probleminhas.
Todas as pessoas possuem, obrigatoriamente, um äppärät, espécie de computador pessoal, universal, congregando todas as mídias possíveis, com acesso a todos os dados sobre qualquer assunto, situação ou pessoa.
O governo é opressor, com suas ações favorecidas por uma sociedade frívola, vazia, com cada pessoa preocupada apenas consigo mesma, com pouco ou nenhum interesse por política, a não ser por parte de alguns revoltosos, em particular os soldados da Guarda Nacional que foram enviados a uma inacreditável guerra com a Venezuela e, na volta, não receberam seu pagamento prometido. E, na guerra, os EUA estão tomando um cacete.
Quem não pertence ao Partido Bipartidário é visto com desconfiança e perde oportunidades de emprego. O SAR – Secretaria Americana de Resistência – governa o país com mão de ferro, disparando diretrizes de segurança que mais lembram situações imaginadas por Kafka. Um cartaz do governo diz: “É proibido admitir a existência deste veículo (‘o objeto’) até que se esteja a 800 metros de distância do perímetro de segurança do aeroporto internacional John F. Kennedy. A leitura deste aviso implica a negação da existência do objeto e seu consentimento”.
As tropas controlam todos os acessos, e às vezes são tropas terceirizadas, contratadas da empresa Staatling-Wapachung Corporation, a mesma na qual trabalha Lenny Abramov, na Divisão de Serviços Pós-humanos. A história segue a vida de Lenny, a partir do diário que ele escreve, intercalado com trechos de conversas de outras pessoas, captadas pelos äppäräti. E, em meio à sociedade em desintegração, Lenny procura ser feliz, apesar de estar passando pelo processo de se tornar uma pessoa invisível, pois está velho, aos 39 anos e sem acesso ao serviço que ele tenta vender às pessoas ricas, uma suposta imortalidade, mas que apenas possibilita mudar a aparência, e parecer sempre jovem.

Lenny encontra o amor na improvável figura de Eunice Park, americana de origem coreana, de 24 anos, fútil como todos de sua geração, mas tentando encontrar algo mais em sua vida. A relação de Lenny com ela e com a sociedade é, às vezes, patética, outras vezes até mesmo heroica, resistindo a alguns avanços da modernidade; por exemplo, ele ainda tem livros – na linguagem da época, "artefatos de mídia, impressos e encadernados", vistos como objetos que “fedem” pelos mais jovens, que só se importam com as Imagens, assim mesmo, com maiúscula, indicando a importância que a imagem assumiu na sociedade. E assim como as informações chegam por meio das Imagens, apenas elas passam a ter importância, eliminando os pensamentos mais profundos e reflexivos. A Imagem determina quem você é, que trabalho você pode ter, com quem pode se relacionar. Pensar é ultrapassado, ou melhor, sequer é um conceito a ser levado em consideração, porque é desconhecido das novas gerações; e as gerações mais velhas tentam acompanhar, transformando-se em jovens na aparência, esvaziando-se e seguindo as modas da sociedade.
A privacidade não existe; tudo é público, imediato, tudo é avaliado, julgado, e essas avaliações constantes – que surgem nos äppärätti de todas as pessoas – definem relacionamentos pessoais, de trabalho e familiares. Uma noite num bar, comumente um momento para distração e confraternização, é algo próximo de uma temporada no inferno, com níveis de estresse altíssimos. As pessoas são “cotadas” por personalidade, fodabilidade e outros itens, e os índices de avaliação mudam constantemente de acordo com as ações das pessoas naquele momento. Os dados são imediatamente disponibilizados nos äppäräti. Assim, todos ficam sabendo, por exemplo, que dos 48 homens presentes no local, Lenny está em 40º lugar, subindo para 30º quando abraça Eunice.
Nas ruas, postes lêem os äppäräti dos que passam e mostram, entre outras informações, como está o crédito delas; de todo modo, qualquer um poderia acessar esses dados apenas apontando o seu äppärät na direção da pessoa.
A vida das pessoas se resume a tentar fazer o melhor para ter melhores índices de fodabilidade e manter seu crédito elevado, para não se tornar um Indivíduo de Baixo Patrimônio Líquido, como os coitados que acampam no Central Park, em Nova York.
Em resumo, trata-se da superficialidade de que tanto se fala nos dias de hoje, mas levada a níveis inacreditáveis, num cenário de pesadelo em que ninguém consegue pensar com clareza.

No livro (e filme) de fantasia A História Sem Fim (1979), de Michael Ende, o mundo era devorado pelo Nada, já que as pessoas deixavam de ler e de acreditar nas histórias. Aqui, o mundo também está sendo devorado pelo Nada, pelo supérfluo, por relações falsas baseadas em estatísticas ou em falsas premissas; é engolfado pela ignorância, que cresce facilmente em mentes preocupadas com o consumo, com a aparência, com sua posição social, mesmo quando se trata de sua posição dentro de um grupo restrito de pessoas.
Tudo é competição constante, mas em busca de coisa alguma. Não há propósito, não há sentimentos verdadeiros, não há racionalidade.
Na ficção científica, este tipo de história é conhecida como distopia – como o oposto da utopia, a sociedade perfeita –, indicando uma sociedade amarrada, presa em seus conceitos e sem ter para onde ir. Uma das mais famosas distopias é o livro 1984 (1948), de George Orwell, que imaginou o Grande Irmão acabando com o pensamento, com a capacidade de agir, de se relacionar, de ter sentimentos, de procurar soluções, de inventar. E para tanto, Orwell eliminou a individualidade, compondo um cenário de terror totalitário.
Em Uma história de amor real e supertriste, tudo isso se reproduz, mas nos novos tempos é o coletivo que é eliminado – em grande parte, ou totalmente, devido aos novos meios de comunicação, alguns dos quais já existem hoje. O coletivo era o vilão em Orwell; a individualidade é o vilão em Shteyngart.
Não por acaso, na orelha do livro, o texto começa com: “Em um futuro bem próximo – digamos, terça-feira que vem...”
O Nada está muito, muito próximo.


Uma história de amor real e supertriste
(Super Sad True Love Styory, 2010)
Gary Shteyngart
Ed. Rocco
384 páginas