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COMO TUDO COMEÇOU

ESPECIAIS/VE UTOPIAS E DISTOPIAS

autorGilberto Schoereder
publicado porGilberto Schoereder
data17/12/2018
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Alguns autores entendem que a forma da narrativa utópica começou a se consolidar com A República, de Platão, escrita por volta do ano 370 a.C., um diálogo do filósofo Sócrates com atenienses e estrangeiros, que se tornou uma das principais obras de Platão, com imensa influência no pensamento ocidental nos campos da filosofia e política. Um dos temas centrais é o conceito de justiça e como seria o estado ideal ou, no caso, a cidade-estado ideal, em comparação com os governos então conhecidos da humanidade, com a proposição da existência de Kallipolis, uma cidade governada por um “rei filósofo”.
Mas foi com Utopia (1516), de Thomas More, que o gênero se estabeleceu definitivamente, abrindo caminho para uma série de obras semelhantes ao longo do século 16 e seguintes. (Ver também o especial Na Ilha, Utopias e Transformações).
Em The Science Fiction Encyclopedia, John Clute e Peter Nicholls entendem que a relevância de Utopia para a ficção científica é controversa, em particular para a ficção científica do século 20, entendendo que a tradição utópica contribuiu minimamente para a natureza fundamentalmente romântica da FC moderna. Eles também apontam para o fato de que embora muitos leitores do livro entenderam que Thomas More estava recomendando o tipo de sociedade que descrevera, uma sociedade na qual ele gostaria de viver, muitos críticos consideram que suas sugestões foram satíricas. “(...) uma vez que a ironia é predominantemente uma questão de tom”, dizem os autores, “e uma vez que é difícil para a maioria dos leitores modernos avaliar o tom de um texto em latim, é quase impossível provar qual é o caso”.
Adam Roberts diz que “O importante na Utopia de More não é que ela imagine um mundo melhor. A literatura, a cultura e o discurso humano cotidiano vêm imaginando mundos melhores há milhares de anos – uma colheita melhor, caça melhor, maior glória em batalha. O que torna More diferente é que ele tentou imaginar uma sociedade melhor de forma sistemática; é ter abordado a pergunta ‘como as coisas podem melhorar?’ por uma, para usar a expressão anacrônica, construção de mundo”.
Roberts cita o livro do biógrafo e crítico inglês Peter Ackroyd, The life and times of Thomas More (1998), no qual ele lembra que os utópicos de More, “(...) além de seus vários melhoramentos na prática social, também ‘encorajam a eutanásia, aceitam o divórcio e abrigam uma multiplicidade de crenças religiosas – condutas que eram consideradas péssimas pelo próprio More e pela Europa católica’.” O argumento de Ackroyd é o de que esses supostos erros na obra de um autor católico se deve ao fato de os utópicos de More “não terem recebido, durante toda a sua história de 1760 anos, as verdades da lei divina”, de modo que o livro de More pode ser visto não como a descrição de uma comunidade ideal, “mas um modelo de lei natural e razão natural levado a seu extremo antinatural”.
Ackroyd, que é um grande conhecedor da história e da cultura de Londres, relaciona os locais da Utopia imaginária com os da Inglaterra real, apresentando a Utopia como o país de More redesenhado por sua imaginação visionária. E, como diz Roberts, “(..) o didatismo dessa imaginação visionária é informado em todos os pontos por um catolicismo tradicional; Utopia é um modelo de sociedade bastante restritivo, autoritário”.

Nos anos seguintes outras utopias foram escritas, como Wolfaria (1521), do teólogo alemão Johann Eberlin von Günzburg, às vezes apresentado como a primeira utopia protestante, que Roberts cita como “uma utopia detalhada e luterana em particular”, assim como diz que “(...) o protestantismo se torna o padrão para a melhoria social nas terras ideais das obras”, no caso as obras A pleasant dialogue between a lady called Listra and a pilgrim, concerning the gouernment and commom weale of the great prouince of Crangalor (1579), de Thomas Nicholls, e Sivqila, Too Good to be True (1580), de Thomas Lupton.
Em 1553 surgia A Cidade Feliz (La Città Felice. Editora Unicamp), de Francesco Patrizi da Cherso. O tradutor Helvio Moraes diz que a obra “(...) encerra as convicções políticas de seu autor, dividindo a opinião da crítica quanto à sua total inserção no rico segmento de escritos utópicos que surgiram na Itália, a partir da segunda metade do Cinquecento, seguindo a trilha do modelo apresentado por Morus e definindo os limites e as especificidades do gênero que surgia”. Ele a apresenta como “(... ) a construção, no plano da abstração, de uma cidade perfeita, fortemente impregnada pelo elemento racional, que, tendo como medida um princípio natural (o corpo humano), lhe fornece os contornos de seu plano urbanístico, mas que também se reflete na organização de suas instituições, na elaboração de sua forma de governo e no detalhamento de um projeto pedagógico voltado à formação de seu cidadão ideal”.
Mas Helvio Moraes também destaca que nem todos os estudiosos da obra a classificam como uma utopia, em particular porque ela foge às classificações muito rígidas. Adam Roberts reconhece que a obra deve muito a Thomas More, mas também entende que se trate menos de uma ficção e mais um manifesto. “O resultado”, diz Roberts, “embora muito desinteressante, é sem dúvida metódico”, o que não parece ser exatamente um convite à leitura.

Bastante conhecida é a utopia de A Cidade do Sol (La Citta del Sole, 1602. Editora Martin Claret. Também pela Editora Vozes), de Tommaso Campanella. Uma versão posterior em latim, Civitas solis, foi publicada em 1623. Campanella era frade dominicano, também filósofo e astrólogo, que teve muitos problemas com a Igreja, sendo acusado de heresia e mantido em cárcere por 27 anos, período em que escreveu várias obras, incluindo A Cidade do Sol.
A cidade do título é teocrática, governada por sábios, no estilo de A República de Platão, em particular o poder supremo, exercido por um sacerdote chamado de Hoh, ou o Metafísico, auxiliado por outros três governadores: Potência (Pon), responsável pela proteção militar da cidade e pela manutenção da paz; Sapiência (Sin), responsável pelas artes e ciências; e Amor (Mor), responsável pela geração, alimentação e vestuários. Todos são felizes e têm suas necessidades atendidas, e o ócio é considerado inaceitável, de forma que todos trabalham, porém de acordo com suas aptidões.
Os bens são comunitários, tantos as moradias como as mulheres e crianças, e a geração de crianças é controlada pelo estado, no caso, sob responsabilidade do Mor, que decide o par ideal a ser formado para gerar a prole perfeita, assim como escolhe a hora exata para a geração a partir dos conhecimentos providenciados pelos médicos e astrólogos
Adam Roberts também compara a obra com a Utopia de More: “Como na Utopia de More, a propriedade é mantida em comum, embora a visão de Campanella seja mais inventiva em termos tecnológicos: carrinhos terrestres impulsionados por grandes velas, navios com autopropulsão e máquinas voadoras são mencionados de passagem; elementos de ciência e cultura são escritos nos muros para edificação pública”.
Roberts cita o professor Mark T. Riley no ensaio “Fiction” (do livro The Oxford Handbook of Neo-Latin), que chama a versão em latim do livro de Campanella um “modelo de um terrível Estado totalitário”, que seria “uma bizarra combinação de astrologia, tecnologia e futurologia”, ainda por cima escrito em latim ruim. Roberts não concorda inteiramente com Riley e diz: “Isso é talvez injusto, pois o romance está muito mais interessado em fazer metáforas com a individualidade que em prever uma autocracia futura. Como o de More, o latim de Campanella contém um jogo de palavras (isto é mais óbvio no título italiano original); sua cidade é ao mesmo tempo Solis, do Sol, e Solus, do eu (...)”.

Em 1619, o teólogo luterano alemão Johann Valentin Andreae publicou Christianopolis (Christianopolis. Edição Lectorium Rosicrucianum, 1985), narrativa utópica que apresenta um náufrago que chega à ilha de Caphar Salama, cujo governo representa uma utopia que existe graças à prática cristã dos habitantes. Andreae ficaria bastante conhecido por seu envolvimento com a história da Fraternidade Rosacruz, uma vez que ele alegava ser o autor do livro O Casamento Alquímico de Christian Rosenkreutz, publicado em 1616, e que se tornaria um dos três pilares para a fundação da Fraternidade. Seu nome ainda esteve envolvido no que se diz ter sido uma farsa montada nos anos 1960, segundo a qual ele teria sido um dos integrantes do chamado Priorado de Sião.

 

Mais conhecida é a utopia de Sir Francis Bacon, Nova Atlântida (Nova Atlantis, 1627. Posteriormente publicado com o título New Atlantis: A Work Unfinished. Em português pela Editora Minerva e na coleção Os Pensadores; também pela Edições 70, de Portugal).
A obra inacabada apresenta a ilha mística de Bensalem, em algum ponto a oeste da costa peruana, descoberta pela tripulação de um navio europeu que se perdeu no Oceano Pacífico. A sociedade que os europeus descobrem é igualitária e baseada em conhecimentos científicos, e comandada pela Casa de Salomão. Não existe fome e quase nenhuma doença, com a vida das pessoas estendendo-se bastante graças a uma combinação entre ciência e religião, uma vez que o cristianismo prevalece no local.
Em The Science Fiction Encyclopedia, Brian Stableford diz que a imaginação científica começou a se tornar influente no pensamento utópico no século 17, e que “A consciência do avanço do conhecimento científico e do papel que a ciência poderia ter na transformação da sociedade apareceu pela primeira vez em Nova Atlântida, de Bacon, e em A Cidade do Sol, de Campanella”.

Em 1648 surgiu Nova Solyma, the Ideal City; or Jerusalem Regained, do inglês Samuel Gott, obra que, segundo Adam Roberts, compartilha com Eudemia (1637-1645), de Ianus Nicius Erythraeus (pseudônimo de Giovanni Vittorio Rossi), “um sabor de história alternativa. Em algum momento em torno do ano 1600, sustenta o romance, os judeus do mundo receberam uma visão divina que os converteu tout court [prontamente] ao cristianismo. Esses judeus redimidos se apoderaram então de Jerusalém e a recriaram como uma utopia cristã”.


Uma utopia foi imaginada também na Austrália, por Denis Vairasse, com seu History of the Sevarambians (1675), que não apenas foi um sucesso na Europa, mas também apontado como uma crítica bem elaborada, em particular à religião. O francês Denis Vairasse teve de fugir para a Inglaterra durante os conflitos religiosos na França, e escreveu a obra originalmente em inglês, apresentando um reino dividido entre uma distopia e uma utopia; a primeira, governada pelo tirano Stroukaras que, segundo se diz, é uma sátira a Luís XIV; a segunda, exatamente a dos severambos, apresenta uma sociedade tolerante e cientificamente avançada, com liberdade religiosa sendo garantida a seus cidadãos.
A Austrália também foi o cenário de A Terra Austral Conhecida (La Terre Australe Connue, 1676. Edição Unicamp), de Gabriel de Foigny, que apresenta o local habitado por uma espécie hermafrodita que vive em aparente paz e harmonia, mas nem tudo é tão perfeito assim uma vez que esses seres não suportam qualquer imperfeição e têm o costume de matar imediatamente após o nascimento quaisquer crianças que tenham apenas um sexo, além de entrarem em guerras de extermínio contra os nativos que tenham apenas um sexo.
Adam Roberts diz que Foigny foi perseguido devido à sua história, não porque os hermafroditas tenham sido vistos como uma afronta, mas porque eles eram representados como nascidos sem pecado original. “Em outras palavras”, explica Roberts, “o livro de Foigny apresenta uma alteridade teológica, uma terra alienígena fora do esquema conceitual da Igreja”.

Segundo Brian Stableford, na segunda metade do século 18, uma escola francesa de filosofia abraçou a ideia de que os progressos moral e tecnológico seguiam paralelamente. Um dos destaques dessa época foi Louis-Sébastien Mercier, com seu livro L’an 2440, rêve s'il en fut jamais (1771) (ver também no especial Viagens no Tempo, "Viagens na Fantasia"). A obra propõe, segundo Stableford, que a perfectibilidade da humanidade não só é possível como inevitável, com a ajuda da ciência, da matemática e das “artes mecânicas”. Stableford também diz que L’an 2440 é a primeira obra de eucronia – termo apresentado na primeira matéria deste especial – levando sua utopia para outra época, em vez de para outro lugar.
A obra foi extremamente popular, tendo mais de 25 edições, mas era considerada perigosa pelas autoridades francesas nesse período pré-revolucionário. E não era para menos. Adam Roberts explica que o narrador, que acorda na Paris do ano futuro do título, encontra “(...) uma cidade utópica governada em bases racionalistas e republicanas; os cidadãos coabitam de modo pacífico; a Igreja Católica foi abolida (substituída por um deísmo universal e racional), como também a escravidão e o colonialismo; a educação escolar tem base não em disciplinas obsoletas, como grego e latim, mas em álgebra e física”.

Ilustração do livro La decouverte australe (Mariage du Fils de Victorin avec Ishmichtriss).

Na mesma época, surge o livro de Nicolas-Edme Rétif de la Bretonne, La découverte australe par un homme volant, ou le Dédale français (1781), também com a descrição de uma utopia baseada em princípios filosóficos e científicos avançados. Adam Roberts apresenta a história: “O jovem protagonista, Victorin, inventa um dispositivo voador mecânico do qual fazem parte asas que lembram um manto e um aparelho tipo guarda-chuva usado na cabeça. Utilizando esse equipamento, carrega a namorada para o ‘Mont-Inaccessible’, um cume alpino de outra forma inatingível, onde os dois vivem felizes e dão início a uma família. De lá voam para a Austrália, onde Victorin estabelece uma colônia, casa o filho com uma gigante nativa da ilha da Patagônia e encontra diversos híbridos animalescos – desde homens-macacos, homens-ursos, homens-cachorros até homens-carneiros, homens-bodes e homens-pássaros. A novela é concluída com uma descrição da terra de Mégapatagonie, um antípoda antieuropeu cuja capital, Sirap, ocupa o ponto do globo terrestre exatamente oposto a Paris, tendo nativos que (como já deveríamos desconfiar, tendo em vista o nome da cidade) falam francês de trás para frente e usam sapatos na cabeça bem como chapéus nos pés”. Roberts entende que os homens-feras de Rétif são apresentados como uma sátira da vida europeia de sua época.