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UTOPIAS E DISTOPIAS MODERNAS

ESPECIAIS/VE UTOPIAS E DISTOPIAS

autorGilberto Schoereder
publicado porGilberto Schoereder
data17/12/2018
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As visões a favor e contra a ciência e a tecnologia que marcaram as histórias utópicas e distópicas do século 19 e início do século 20, continuaram a surgir ao longo do século 20. Brian Stableford cita Hugo Gernsback como um dos primeiros vigorosos defensores da ciência, e um “eucronista confirmado, que acreditava que um estado utópico deveria ser, inevitavelmente, produto do progresso tecnológico”, tendo ele mesmo escrito um romance utópico, Ralph 124C 41+ (1911-12), publicado como uma série na revista Modern Electrics, criada por ele mesmo.
Gernsback é um nome importante do gênero, ainda que controverso. Ele cunhou o termo scientifiction (cientificção), que mais tarde seria alterada para o atual termo science fiction (ficção científica). Adam Roberts comenta que “devemos ser gratos ao fato de o desajeitado neologismo de Gernsback, com seu ritmo convulsivo de trava-línguas, não ter vingado”. Para alguns, o gênero começou com ele, ao fundar a revista Amazing Stories: The Magazine of Scientifiction, em 1926. Para outros, ele pouco mais fez do que imaginar um nome para um gênero, mesmo que esse nome tenha sido modificado. Existem escritores que chegam a dizer que Gernsback representou mais um atraso para o gênero do que uma ajuda.

                                                                                                        (Capa: Frank R. Paul/ The Stratford Company).

No caso do romance utópico do autor, Roberts diz que “Trata-se de uma novela bastante canhestra, estruturada de maneira precária, com uma narrativa dificilmente capaz de envolver o leitor, abarrotada de exemplos do que seria mais tarde chamado de infodumps (trechos de exposição técnica e científica inseridos no texto, não importando se seriam ou não oportunos)”.
Brian Stableford entende que, apesar da inspiração e intenção de Gernsback, a ficção científica nunca foi fortemente utópica. Ele diz que o livro de Wells, História do Futuro (The Shape of Things to Come, 1933), foi o último grande romance utópico tecnológico, enquanto a FC que começava a ser veiculada nas revistas pulp, como a do próprio Gernsback, era composta em grande parte por histórias de aventuras situadas em futuros “pseudoutópicos”; porém, quando os escritores viravam suas atenções não para as aventuras, mas para as possibilidades da sociedade como um todo, as dúvidas e o pessimismo eram óbvios.

Twilight, na revista Astounding Stories (Capa: Howard V. Brown).


Stableford cita três histórias como exemplos dessa situação: Paradise and Iron (1930), de Miles J. Breuer; City of the Living Dead (1930), de Laurence Manning e Fletcher Pratt; e Twilight (1934), de John W. Campbell Jr., com o pseudônimo Don A. Stuart. “Todas”, explica Stableford, “preveem decadência e declínio para a humanidade como consequência da dependência excessiva das máquinas”.

 

                                                                                                      (Capa: Bob Pepper/ Signet-New American Library).

Stableford também entende que o pensamento utópico (entre a década de 1930 e o final da década de 1970), em grande parte se dissociou da ideia de progresso e, mais comumente, associou-se à ideia de um “recuo histórico” para um modo de vida mais simples. Essa situação pode ser vista em livros como A Ilha (Island, 1962), de Aldous Huxley, comentado na matéria anterior, e também nos livros Islandia (1942), de Austin Tappan Wright, Watch the North Wind Rise (1949, também com o título Seven Days in New Crete), de Robert Graves, e em Ecotopia (1974), de Ernest Callenbach.
Islandia é uma obra com mais de mil páginas publicada postumamente, e ainda reduzida drasticamente pelo editor. A Islandia da história é uma terra imaginária que o autor começou a conceber ainda em sua juventude, incluindo dados históricos, geográficos, linguísticos e culturais. O país situa-se no semicontinente de Karain, provavelmente no Atlântico sul, em algum ponto entre a América do Sul, a África e a Antártida. Para lá é enviado o jovem John Lang, como cônsul dos EUA, com o objetivo de estabelecer comércio com o país. A utopia imaginada por Austin Tappan Wright inclui o amor dos cidadãos pela natureza, o fato de todas as pessoas, independentemente de classe social, realizarem trabalhos “úteis”; também não têm grande avanço tecnológico, mas grande compreensão da natureza e da psicologia humanas. E, em particular, uma visão bem aberta com relação ao sexo.
O escritor Mark Saxton, que primeiro editou o trabalho de Wright, também escreveu três livros no mesmo ambiente: The Islar, a Narrative of Lang III (1969); The Two Kingdoms: a Novel of Islandia (1979); e Havoc in Islandia (1982).

(Capa: Mitchell Hooks/ Avon).

Seven Days in New Crete/ Watch the Northwind Rise, de Robert Graves, foi considerado por John Clute como “uma tradução complexa de suas ideias acerca da natureza da poesia e sua relação ideal com o mundo. (...) O romance, que é enquadrado como um possível sonho de seu protagonista, um poeta levado ao futuro pelos Poetas-Magos que são a casta governante de Nova Creta, não oferece uma defesa bem definida da utopia que descreve e, de fato, o poeta intrometido, como é frequente nesse tipo de escrita, foi introduzido, talvez mais do que semiconscientemente, para destruir o equilíbrio estático da sociedade ideal à qual foi levado”.
A sociedade apresentada rejeitou quase toda a tecnologia desenvolvida após o período medieval, segue uma religião neopagã, da Deusa Tríplice, é basicamente uma sociedade matriarcal, sem sinais de pobreza, inclusive com o dinheiro sendo abolido. Muitas das ideias desenvolvidas por Graves em seu romance utópico seguem conceitos que ele apresentou em sua obra A Deusa Branca (The White Godess, 1948), pela qual ficou mais conhecido.

                                                                                                                                                                                       (Capa: Mark Harrison/ Bantam Books).

Um livro que foi um sucesso razoável em sua época e que nos últimos anos voltou a ser comentado é Ecotopia, de Ernest Callenbach, também seguindo na linha de procurar elaborar uma sociedade “mais simples” e, no caso, com preocupações ecológicas. É considerada como uma das primeiras “utopias ecológicas”, tendo influência na contracultura dos anos 1970. A história situa-se em 1999, apresentando o diário de um jornalista que escreve sobre Ecotopia, um país formado depois que o norte da Califórnia e os estados de Oregon e Washington separaram-se dos Estados Unidos.

 

Stableford cita dois livros como exemplos de “tentativas em larga escala de imaginar um estado futuro tecnologicamente desenvolvido que seja, em qualquer sentido da palavra, ideal”, e ainda assim ambos são claramente ambíguos. Ele se refere a O Jogo das Contas de Vidro (Magister Ludi, 1943, também com o título The Glass Bead Game. Editora Record), do Prêmio Nobel de Literatura, Herman Hesse (em 1946); e Star of the Unborn (1945/46), de Franz Werfel.
A história do livro de Hesse se passa no país fictício de Castalia, na Europa Central, no século 23, uma sociedade em que a tecnologia é mantida no mínimo necessário. O jogo do título é, como disse John Clute, um elemento central nessa utopia, “(...) combinando disciplinas estéticas e intelectuais não descritas em uma atividade que (por analogia com a música de Johann Sebastian Bach) soluciona as dissonâncias do mundo exterior para os habitantes da comunidade de elite de Castalia, liderada por Joseph Knecht, o Magister Ludi, ou Mestre dos Jogos, cuja biografia constitui a parte principal do romance”. Brian Stableford diz que “o herói finalmente rejeita o ideal no qual sua sociedade é baseada”. Por outro lado, no livro de Werfel “não há rejeição, em grande parte porque o estado do futuro mantém, assim como sua miraculosa tecnologia, a fé católica do autor, mas existe uma boa porção de dúvida quanto aos fundamentos práticos e éticos, se o ideal utópico poderia ou deveria ser mantido. Nessa utopia, ainda existe rebelião, guerra e certa quantidade de horror”.


VEJA A SEGUIR MAIS HISTÓRIAS IMPORTANTES DA FC SOBRE O TEMA


SE ISTO CONTINUAR (If This Goes On, 1940)
COVENTRY (Coventry, 1940)

Robert A. Heinlein.

Capa da primeira edição (Capa: Hubert Rogers/ Shasta).


As duas histórias foram publicadas originalmente na revista Astounding Science Fiction em 1940 e, posteriormente, no livro Revolta em 2100.

                                                                                                                                       (Capa: Hubert Rogers).

Em Se Isto Continuar (também comentado no especial FC e Religião, em "Religião e Controle"), a história se situa em 2050 e é apresentada como exemplo de uma “fórmula” levantada por Brian Stableford. “Revolução contra um futuro distópico”, ele escreveu, em The Science Fiction Encyclopedia, “tornou-se o enredo principal da FC pulp, em parte porque uma fórmula como essa oferecia muito mais potencial dramático do que as utopias. O cenário padrão envolve um estado totalitário opressivo que mantém seu domínio e estabilidade por meio de tecnologia futurista, mas que ao final é derrubado por tecnologias mais modernas utilizadas por revolucionários”.
De fato, na história surge essa ideia comum na FC, com a utilização de modernas técnicas de comunicação, principalmente da TV e derivados futuros, como forma de fortalecer e consolidar o poder do governo. De certa forma, Heinlein antecipa vários aspectos do tema, assim como a visão de um estado religioso representando um nítido retrocesso social, com a tirania sobrepondo-se à democracia e às liberdades individuais, com o grupo religioso aproveitando-se de problemas econômicos em um determinado momento da história para se impor.

(Capa: Hubert Rogers).

Coventry situa-se em 2075, período em que, segundo a cronologia do futuro de Heinlein, inicia-se a Primeira Civilização Humana. Nessa época, uma espécie de utopia se instalou no planeta, com o governo alegando ter a capacidade de curar criminosos e quaisquer pessoas com tendências violentas. Os que não desejam submeter-se ao tratamento não podem fazer parte da sociedade, sendo considerados desajustados e tendo de viver em Coventry, uma imensa área cercada, dentro dos EUA.
A história inicia com o julgamento do personagem David MacKinnon, acusado de agressão. Ele deplora o tédio e a cautela do mundo em que vive, preferindo ir para Coventry e tentar a vida em um pedaço de terra. Mas Coventry não é exatamente o que ele imaginava e, já na chegada, ele tem seus bens “confiscados” e vai parar na cadeia ao resistir a uma inspeção aduaneira. E é lá que conhece Fader Magee, que lhe explica os detalhes acerca de Coventry que acabam com as esperanças de MacKinnon de ter uma vida anárquica, individual e sem interferências.
Ele fica sabendo que Coventry é dividida em três “nações”. A Nova América, onde ele se encontra, é teoricamente democrática; o Estado Livre é uma ditadura governada pelo Libertador, que não deixa espaço algum para liberdades individuais; e existem os Anjos, remanescentes do exército do Profeta, relatado em Se Isto Continuar. Os três estados, ou grupos, postulam o direito de governarem não apenas Coventry, mas o restante do país.
Os dois fogem da prisão, vão parar no submundo da sociedade e ficam sabendo que a Nova América e o Estado Livre se uniram com a intenção de atacar os Estados Unidos com uma nova arma. Ao saber como são os estados de Coventry, MacKinnon resolve retornar aos EUA e avisar sobre o perigo de invasão.


REVOLUÇÃO NO FUTURO (Player Piano, 1952)
Kurt Vonnegut Jr.

Capa da primeira edição (Charles Scribner's Sons).

Esse é o primeiro romance de Kurt Vonnegut Jr., que viria a se tornar um dos escritores mais cultuados dos anos 1960 e 1970. Segundo o autor, a inspiração foram os livros de Aldous Huxley e George Orwell – Admirável Mundo Novo e 1984 – como o seu livro, também distopias.
A história situa-se num futuro próximo, após uma Terceira Guerra Mundial, com todas as máquinas sendo controladas por um supercomputador, o EPICAC, que foi a base de seu conto "EPICAC" (1950. Publicado em Mundo Louco, ou Bem-Vindo à Casa dos Macacos). Como resultado da intensa mecanização, a quantidade de desempregados é enorme. Os engenheiros e os dirigentes controlam tudo e são os únicos privilegiados, porém também inseridos em um sistema de castas rígido no qual qualquer falha implica no fim dos privilégios. O povo vive de subsídios e empregos paralelos, recebendo os bens materiais que as fábricas produzem quase de graça. Os engenheiros e dirigentes não têm de fazer praticamente nada, uma vez que as decisões são tomadas pelo computador. A população não tem quaisquer perspectivas de melhoria ou de tornar suas qualidades visíveis, quando as têm. Até a arte é programada.
Nessa sociedade onde tudo é aparência, superficial, alguns engenheiros sentem-se descontentes com a situação, alguns enlouquecendo, outros simplesmente sendo levados a situações extremas, e arma-se um cenário para um golpe de estado, uma revolução com o objetivo de tomar o controle do país, extinguir o uso da computação como forma de resolver todos os problemas e devolver à população a possibilidade de trabalhar, se sentir-se útil.
O livro ainda não apresenta as doses de humor sarcástico e crítico que marcaria a obra do autor, mas ainda assim é excelente.


FAHRENHEIT 451 (Fahrenheit 451, 1953)
Ray Bradbury.
O livro de Bradbury tornou-se um clássico da FC e, em particular, das modernas histórias de distopias. Segundo Brian Stableford, Fahrenheit 451 é o único livro genuinamente distópico produzido no período, uma vez que muitas histórias “usavam imagens distópicas para conveniência dramática”. O livro de Bradbury, diz ele, mantinha a elite da sociedade completamente amorfa para poder se concentrar nos meios pelos quais ocorrem a opressão e o controle governamental, com a “poderosa imagem-chave do bombeiro cujo trabalho é queimar livros”.
Adam Roberts diz que o livro de Bradbury “parece ser uma sátira do desejo totalitário de suprimir o livre pensamento, mas que essa descrição “(...) não consegue capar o insólito, a estranheza à flor da pele da poesia de Bradbury. Em vez de ser uma obra no estilo de raiva e indignação de 1984, é uma fábula branda, comovente, sobre os meios e sobre até que ponto é possível transcendermos nossas limitações cotidianas e nos tornarmos mais do que éramos. A literatura, no sentido mais pleno, representa para Bradbury esse potencial de crescimento”.
Assim como na história de Heinlein, Se Isto Continuar, comentada acima, a televisão também se torna um instrumento importante, ainda que não central, dessa sociedade em que o individualismo foi banido. O sistema da sociedade é opressivo, com grande parte da população já totalmente condicionada a pensar que “(...) nenhum livro concorda com o outro. As pessoas que estão nesses livros nunca existiram”, como parte de um processo de massificação e de uma união artificial em torno de um único modo de pensar e viver, destruindo a individualidade e, portanto, as diferenças de pensamento e de caráter, próprias da natureza humana.

                                                                                                                                                                                  (Capa: Joe Mugnaini/ Hart-Davis).

Dessa forma, os livros são considerados perniciosos e devem ser queimados, função dos bombeiros, entre eles Montag, o personagem central. Como ocorria na Alemanha nazista, a forma de se descobrir aqueles que têm livros escondidos em suas casas é a denúncia.
O condicionamento das pessoas a um modo de viver superficial é percebido por meio da futilidade das conversas entre as pessoas, além dos programas fúteis transmitidos pelas paredes-televisão que todas as casas possuem. E os espectadores ainda usam um aparelho no ouvido para se comunicarem uns com os outros, no que chamam de “A Família”. Elas raramente se encontram pessoalmente e, quando o fazem, é para assistirem juntos aos programas.
Até mesmo a história é modificada para “provar” que a função dos bombeiros na sociedade sempre foi a de queimar livros, e as guerras que estão sempre ocorrendo sequer são comentadas. A proposta dos governantes é de que as pessoas precisam ter paz. Como um dos representantes do poder, o capitão dos bombeiros, em um momento em que Montag parece estar em dúvida, lhe diz: “Se não quer que uma pessoa seja politicamente infeliz, não lhe dê os dois lados de uma questão para se preocupar. Dê-lhe um só. Melhor ainda, não lhe dê nenhum”. Esse pensamento aplica-se a tudo. Em nome da paz das pessoas, o governo lhes tira tudo, e o espaço vazio é preenchido com lixo, com amenidades.
Não existe exatamente uma força de resistência a esse estado de coisas, nenhum grupo violento. Não seria possível, dado o adiantado estado desse condicionamento. As pessoas realmente não se importam. Sentem-se mal, desesperadas, quando alguém perto delas “pensa”. Os que pensam, os que perguntam, são a minoria com personalidades fortes, ou simplesmente curiosos.
O bombeiro Montag viveu 10 anos queimando livros sem se preocupar com o que isso significava, até gostando. Mas Bradbury mostra como a massificação não pode apagar totalmente a individualidade. A personalidade, por mais sufocada que esteja, permanece escondida, esperando o momento exato para ressurgir. O próprio queimador de livros se modifica. Uma conversa com um velho que “pensa”, num parque, uma linha lida ao acaso num livro, uma mulher que se incendeia junto com seus livros, e Montag está pronto para modificar-se.

                                                                                        Oskar Werner (Anglo Enterprises/ Vineyard Film Ltd.).

A história foi adaptada para o cinema com Fahrenheit 451 (Fahrenheit 451, 1966), com direção de François Truffaut, e não teve entre a crítica a mesma recepção do livro, apesar da presença de um dos principais cineastas da Nouvelle Vague, a Nova Onda do cinema francês ocorrida a partir do final dos anos 1950 e início dos 1960.
O filme traz Oskar Werner como Montag, e Julie Christie num papel duplo, como sua esposa e também como a mulher que o faz mudar seu comportamento. Também tem Nicolas Roeg como diretor de fotografia, ele que também seria um bom diretor (são dele, por exemplo, Inverno de Sangue em Veneza e O Homem Que Caiu na Terra).
Phil Hardy não poupa críticas ao afirmar que, “sem dúvida, é o pior filme de Truffaut (...) sendo prejudicado pelo comprometimento de seu diretor pelo personagem”, como ocorre quando ele transforma o Capitão Beatty (Cyril Cusack), chefe de Montag, numa pessoa verdadeiramente simpática, e faz isso ao custo da visão de vida apresentada no livro. Para Hardy, o livro de Bradbury é simplista na apresentação das pessoas que decoram os livros e, assim, mantêm vivo o espírito de liberdade; mas o livro mantém uma sutileza polêmica que está totalmente ausente no filme. “A diferença entre os dois”, diz Hardy, “em nenhum momento é mais aparente do que nas imagens finais do romance e do filme. No primeiro, a transformação do povo dos livros em uma biblioteca viva e um arsenal para futuros revolucionários é celebrada. No filme, enquanto eles andam pela neve entoando interminavelmente a literatura mundial, a câmera de Truffaut os vê como zumbis; em seu comprometimento com aquilo que não compreendem, eles passaram por uma lavagem cerebral, assim como seus perseguidores queimadores de livros”.

Oskar Werner e Julie Christie, acomodados em casa.

Phil Hardy ainda dá o crédito devido a Nicolas Roeg pelas imagens, pelo “esplendor visual” do filme.
John Brosnan (em The Science Fiction Encyclopedia) também fez referência à imagem final do filme, e com palavras semelhantes. “O filme”, ele disse, é mais ambíguo do que o original de Bradbury; Truffaut parece não aceitar completamente a simplicidade moral de Bradbury. Isso é particularmente evidente ao final, com o povo dos livros murmurando alto as palavras que se comprometeram a memorizar, enquanto se arrastam na paisagem coberta de neve como zumbis. As palavras podem ter sido salvas, mas a própria literatura parece estar morta”.

                             Uma das cenas marcantes: uma leitora sacrificando-se juntamente com seus livros proibidos.

Adam Roberts também considerou Fahrenheit 451 como um dos filmes menos interessantes do diretor. “Com espetacular aptidão para captar ritmos e texturas da vida cotidiana, Truffaut (...) tropeçou um pouco na novela clássica de Ray Bradbury. (...) A quase evanescente sutileza de efeitos de Bradbury é transferida para uma sátira antiautoritária demasiado óbvia”.
Se a versão cinematográfica de Truffaut não agradou aos críticos, a nova versão foi ainda pior, sendo produzida em 2018, pela HBO, com direção de Ramin Bahrani e Michael B. Jordan no papel de Montag. A história foi adaptada, para não dizer que bastante modificada, inclusive acrescentando uma relação passada de Montag com seu pai que o faz tomar determinadas atitudes, e adaptações para os tempos modernos, com os rebeldes, agora não necessariamente memorizadores de livros, com um plano de codificar os livros e inseri-los no DNA de pássaros.


OS MERCADORES DO ESPAÇO (The Space Merchants, 1953)
Frederik Pohl e C.M. Kornbluth.

(Capa: Richard Powers).

O livro faz parte da “fórmula” citada por Brian Stableford anteriormente na matéria, no caso, segundo ele, fórmula tornada mais refinada nas revistas de FC dos anos 1950. Ele explica que, nessas revistas, surgiu toda uma geração de histórias nas quais grupos específicos de poder chegam a dominar toda a sociedade, moldando-a aos seus interesses. Para Stableford, Os Mercadores do Espaço é o arquétipo desse tipo de história, com executivos da publicidade como o grupo dominante. E acabou se tornando um dos livros mais conhecidos de sua época. Originalmente, a história foi publicada em três partes, em 1952, na revista Galaxy Science Fiction, com o título Gravy Planet.
Os eventos são narrados na primeira pessoa por Mitchell Courtenay, publicitário trabalhando na Sociedade Fowler Schocken, que se utiliza de todos os recursos, inclusive os mais baixos e ilegais, para vender seus produtos. A Sociedade pretende, depois de se impor à Terra, conquistar o mercado de Vênus, planeta que está sendo colonizado pelos EUA, e Courtenay é escolhido como o chefe do departamento de Vênus.

                                                                                                    Edição da revista Galaxy com a história Gravy Planet (Capa: Ed Emshwiller).

A sociedade é totalmente dirigida por publicitários, com o presidente dos EUA sendo apenas um fantoche e os senadores sendo nomeados não pelo estado que representam, mas pelas empresas que pagam seus salários. Nesse mundo, são comuns os atentados contra concorrentes, em qualquer ramo de negócio, ou mesmo dentro de uma mesma empresa. Os publicitários trabalham para diminuir o QI da população, criando vícios irrecuperáveis em nome do consumismo absoluto e da manutenção do poder.
Pohl e Kornbluth, que tiveram algumas colaborações em seus trabalhos, conseguem criar uma crítica social efetiva sem abrir mão de muito humor e sarcasmo.


DE BOAS INTENÇÕES... (Hell’s Pavement, 1955)
Damond Knight.

(Capa: Richard Powers).

Esse foi o primeiro romance de Damon Knight, com história adaptada de contos anteriores. Os Análogos (The Analogues), que forma o primeiro capítulo, foi publicado originalmente com esse título em 1952, na revista Astounding Science Fiction; os capítulos seguintes foram adaptados de sua história Turncoat, publicada em 1953 na revista Thrilling Wonder Stories.
O primeiro capítulo já começa a desenhar a sociedade, sendo apresentado o “análogo”, o mais recente tratamento idealizado para evitar crimes. O análogo é introduzido na mente do paciente criando alucinações auditivas, visuais e táteis integradas, funcionando em nível subconsciente, estimulando a criação de falsas imagens que levam o paciente a evitar o crime que está para cometer. Pode ser a imagem da mãe, de um policial, ou o que for oportuno para impedir a ação, uma vez que o análogo é uma parte de sua própria mente trabalhando contra os seus objetivos conscientes.

                                                      Edição da revista ASF, com a história The Analogues (Capa: Hubert Rogers).

Num momento inicial, existe uma tentativa de fazer passar uma lei que obrigue as pessoas já condenadas a se tratarem com o análogo e, depois de 10 anos, tornar esse tratamento obrigatório para todos os cidadãos acima dos sete anos de idade. No entanto, é claro que o tratamento é visto pelos próprios médicos envolvidos nele como uma muleta, uma vez que não cura o paciente de coisa alguma; as causas continuam a existir, sendo temporariamente reprimidas, bloqueadas e, portanto, mais cedo ou mais tarde deverão exprimir-se de outra maneira.
A história tem um salto no tempo, indo para o ano de 2.134, um futuro aterrador em que o tratamento foi, como previsto, aprovado, de modo que todas as pessoas agora têm seu “anjo-análogo”, impedindo-as de manifestarem cólera e quaisquer atitudes não previstas pelos Executivos, e impelindo-as a consumir tudo o que os Vendedores acharem que elas devam comprar; a palavra do Vendedor funciona como uma ordem na mente controlada dos cidadãos.

Edição da revista Thrilling Wonder Stories com a história Turncoat (Capa: Jack Coggins).

O enredo segue as aventuras do jovem Arthur Bass, que é um Imune, ou seja, ele não sofre os efeitos do tratamento com o análogo. Ele é perseguido e tem de fugir de sua sociedade por comportamento inapropriado e proibido com sua namorada, vai parar na terra dos Outros, uma sociedade em que as pessoas igualmente são controladas por análogos, mas obedecendo a outro tipo de moral, o que também lhe causa problemas.
Em ambas existe um clima religioso, com aqueles que conseguem vencer seus análogos ou que são Imunes sendo vistos como demônios, o que ocorre com Arthur. Ele vai parar no Colégio de Ciências Sagradas que, na verdade, é um dos locais onde se reúnem as pessoas como ele, chamados de “possessos”, os que não se dobram à ação de um anjo-análogo.
E ainda existe um local chamado de Vazio, onde são jogados os imunes capturados pela sociedade, um local separado do mundo onde uma pessoa é capaz de “criar” qualquer coisa apenas desejando que ela aconteça ou exista.
O livro é bem divertido e movimentado, com boas ideias, mas com uma resolução final mal acabada.


A CIDADE E AS ESTRELAS (The City and the Stars, 1956)
Arthur C. Clarke.

(Capa: Bob Eggleton).

O livro é um dos clássicos da FC e entre os melhores de Arthur C. Clarke, senão o melhor. O crítico Peter Nicholls disse que é uma das mais vigorosas histórias sobre “avanço conceitual” no gênero. O “avanço conceitual” é um item abordado em The Science Fiction Encyclopedia, e fundamental para o gênero, que Nicholls diz que pode ser mais bem explicado pelo “paradigma”, da forma como o termo é utilizado pelos filósofos da ciência, ou seja, um modo de ver e interpretar o mundo.
“As lendas de Prometeus e do Dr. Fausto”, diz Nicholls, “contêm uma imagem central que ainda está viva na FC: o herói em seu desejo por conhecimento vai contra o desejo de Deus, e apesar de ser bem sucedido em sua busca ele é finalmente punido por seu orgulho e desobediência arrogantes. Adão comendo sua maçã é outra versão da lenda. Seus ecos repercutem por toda a literatura”.

                                                                                             (Capa: Earle Bergey).

A história é uma releitura de seu conto Against the Fall of Night (1948), publicado na revista Startling Stories, e situa-se no futuro longínquo, cerca de um bilhão de anos, quando quase nada existe mais na Terra. Mas a cidade de Diaspar continua viva, em meio a um deserto, isolada de tudo por um muro gigantesco. A população de Diaspar é praticamente imortal, porém extremamente conservadora, não desejando saber de nada que não se refira à sua própria existência na cidade, fechada para o mundo e para o universo. As pessoas vivem por milhares de anos, sendo então recolhidas a bancos de memória, cuidadas por um supercomputador, que também controla cada átomo de Diaspar para que nada se estrague ou se perca. Depois de mais alguns milhares de anos, as pessoas “nascem” novamente, já em corpos adultos perfeitos; depois de alguns anos, recuperam as memórias de suas vidas anteriores, desde que tenham escolhido guardar essas memórias nos arquivos do computador.
Nada ameaça a vida nessa sociedade, perfeita nos detalhes, sem doenças e sem necessidade real de qualquer tipo de trabalho, uma vez que o computador a provê de absolutamente tudo. Todo o tempo é livre para se fazer o que se desejar, dedicar-se ao estudo que mais aprouver. Porém, nada disso funciona como um impulsionador da sociedade, que continua estática. As pessoas tremem à simples menção dos espaços fora da cidade, uma memória que vem de tempos passados, de histórias que falam de seres alienígenas conhecidos simplesmente como Invasores, que teriam expulsado os seres humanos das estrelas que haviam conquistado e colonizado com sua tecnologia.
De tempos em tempos surgem os Únicos, seres humanos que não têm nada em comum com os demais habitantes da cidade, como se fossem rebeldes especialmente construídos pelo computador para agitar essa civilização. Os que surgiram nos milhares de anos anteriores simplesmente desapareceram sem deixar vestígios, mas com Alvin as coisas correm de maneira diferente.

(Capa: Chris Moore/ Gollancz).

Ser um Único significa que nunca viveu antes, não foi “reconstruído” a partir das memórias anteriores, e ele tem um desejo irrefreável de buscar por algo diferente. É esse desejo que o leva a descobrir uma via de acesso para sair de Diaspar, para a antiga cidade de Lys, que ele nem sabia se ainda estaria viva. Lá, ele descobre outro tipo de comunidade, com as pessoas vivendo em vilas simples e com um tipo de vida quase oposto ao de Diaspar; as pessoas vivem o tempo normal de vida de um humano, trabalham para sustentar-se, comunicam-se telepaticamente, mas também desejam o isolamento, evitando a todo custo o contato com Diaspar.
Alvin também encontra o local que teria sido a última fortaleza terrestre, onde os Invasores finalmente teriam sido detidos, e lá existe uma inteligência alienígena que aguarda a chegada de seres que chama de os Grandes. Também encontra um robô, que ele leva até Lys e Diaspar, para provar que existe vida fora da cidade e tentar forçar uma situação para as duas comunidades. Ele entende que misturar as duas sociedades seria a única solução possível para sair do marasmo em que elas se encontravam.

                                                                                                                                    (Capa: Richard Powers/ Signet - New American Library).

Por intermédio do robô, Alvin ainda descobre a existência de uma antiga nave espacial, propriedade do Mestre, o último grande profeta da humanidade, e resolve viajar para um local distante no espaço, conhecido como os Sete Sóis, possível moradia dos seres conhecidos como os Grandes.
Ele não encontra exatamente o que imaginava, mas a história ainda tem muitas revelações sobre o passado distante da humanidade e sua atuação no universo. No sentido proposto por Nicholls, de uma quebra de paradigma, uma completa transformação na forma de conceber o mundo e o universo, de fato existem poucos livros tão consistentes como esse na ficção científica.
Também elabora o conceito de um confronto entre o Bem e o Mal, transportando-o para o universo do gênero e propondo a participação direta dos seres humanos em um possível confronto entre os dois conceitos, materializados em entidades com existência real no cosmo.
Um dos grandes momentos de Arthur C. Clarke e da ficção científica, com o autor conseguindo manter um equilíbrio entre duas posturas vistas com frequência em sua obra – a científica e a mística, ou religiosa.


LARANJA MECÂNICA (A Clockwork Orange, 1962)
Anthony Burgess.
A história situa-se num futuro próximo, em Londres, centrando-se nas ações de um grupo de jovens extremamente violentos, em particular Alex, o líder, que é preso e submetido a um tratamento para alterar seu comportamento.
Em The Science Fiction Encyclopedia, o escritor e crítico britânico Maxim Jakubowski disse que o romance é “Uma visão convincente e cômica da forma pela qual a violência chega a dominar a mente. (...) é um romance irônico na tradição das antiutopias de Zamiatin e Orwell”.
Adam Roberts considerou o livro “(...) uma obra-prima de enfoque, uma novela de ficção científica profundamente católica. Burgess definiu seu cenário – um Reino Unido futuro controlado pelo Estado, muito influenciado pela Rússia soviética – menos por meio da descrição e mais – de modo brilhante – por meio de um inventado jargão futuro, um idioma que mescla gíria, americanismos e russianismos, no qual o narrador em primeira pessoa, Alex, conta sua história. (...) Os crimes de Alex são muito graves, mas seu condicionamento é muito pior; esse é o significado do título evasivo, a inerente monstruosidade do choque cibernético entre o orgânico e o mecânico. (...) A principal falha da novela é a recusa rabugenta de Burgess em acreditar que a música pop, pelo menos para Alex, pudesse ser algo mais que uma babaquice. Alex, tão convincente em sua bandidagem adolescente, acalenta um improvável amor por Beethoven (...). Mas a excelência da novela está ligada ao modo determinado de elaborar seu tema; é muito melhor a humanidade possuir livre-arbítrio, mesmo que algumas pessoas o usem para um mau comportamento, que ver essa liberdade lhe ser retirada e sua humanidade ser condicionado de forma imposta por um governo tão ou mais violento, ainda que o condicionamento resulte no bom comportamento. É por causa dessa tese explicitamente católica, e não apesar dela, que Laranja mecânica é uma grande novela de FC”.
O livro tem um capítulo final em que Alex é totalmente recondicionado, percebe os erros que cometeu e desiste das ações violentas, capítulo que não foi publicado na edição norte-americana por decisão do editor e anuência de Burgess.

Malcolm McDowell, Warren Clarke, James Marcus, Michael Tarn (Warner Bros./ Hawk Films).

A adaptação para o cinema, dirigida por Stanley Kubrick em 1971, acabou se tornando mais famosa do que o livro que, na época, teve acolhida apenas amena. Em algumas oportunidades o filme foi condenado pela violência que apresenta; em outras, foi enaltecido por reforçar a mensagem da necessidade de manter o livre-arbítrio. Ao compará-lo com o filme anterior de Kubrick – o clássico 2001: Uma Odisseia no Espaço – o crítico Phil Hardy disse que o filme anterior claramente vê o ser humano como não estando no controle de seu destino, mas ainda assim ele é um filme “positivo”, enquanto Laranja Mecânica, ainda que comemore o livre-arbítrio, é bem mais pessimista.
Adam Roberts diz que ao pôr “em imagens visuais a prosa enfática de Anthony Burgess, Kubrick parece ter ido longe demais”. Segundo ele explica, Kubrick rejeitou o moralizante capítulo final do livro, “e apresentando a violência de Alex como mais ou menos sem consequência, o filme atinge uma intensidade desordenada e perturbadora”.
O filme foi censurado no Brasil e só apresentado em 1978, e é impossível não falar sobre isso, especialmente para quem viu as primeiras exibições “liberadas” no país. Todas as cenas em que apareciam corpos nus foram censuradas com bolas pretas cobrindo as “partes pudendas”. Os personagens movimentavam-se pela tela, às vezes correndo, e as bolas pretas tentavam acompanhar, de modo que cenas violentas como as de estupro acabavam perdendo completamente o sentido original, e as pessoas acabavam rindo da situação ridícula propiciada pela censura nacional. E lembrem-se de que, em 1978, os filmes ainda não eram digitais e as bolas pretas tinham de ser inseridas quadro a quadro, de modo que elas literalmente perseguiam os personagens na tela. Patético.

Anthony Burges ainda escreveu outra história distópica, também publicada em 1962, Sementes Malditas (The Wanting Seed. Ed. Artenova). O livro lida mais diretamente com o tema da superpopulação, ou mais exatamente, como disse Maxim Jakubowski, com tentativas de desacelerar a explosão populacional por todos os meios possíveis, o que inclui incentivar a homossexualidade e a autoesterilização.


À BEIRA DO FIM (Make Room! Make Room! 1966)
Harry Harrison.

(Capa: Adrian Chesterman/ Penguin Books).

O critico Brian Stableford disse que, durante os anos 1960, uma série de motivos para acreditar em um futuro distópico foram descobertos, mais para justificar do que para causar a visão de mundo pessimista típica da época. E um dos temas utilizados foi o da superpopulação, que começou a inspirar várias histórias, entre as quais À Beira do Fim é uma das mais impressionantes. Stableford considerou o livro “uma projeção cuidadosa e detalhada cujas virtudes foram inteiramente perdidas quando foi filmado como No Mundo de 2020” (ver o especial Mil Cidades, na matéria Gente Saindo Pelo Ladrão).
O filme foi dirigido por Richard Fleischer, com Charlton Heston no papel central, e de fato não teve uma recepção das melhores entre a crítica, mas ainda assim acabou se tornando um cult e um dos preferidos no gênero.


STAND ON ZANZIBAR (1968)
A ÓRBITA EM ZIGUEZAGUE (The Jagged Orbit, 1969)
THE SHEEP LOOK UP (1972)

John Brunner.
Os três livros de John Brunner são tidos por alguns críticos como o que ele produziu de melhor, e todos lidam com mundos distópicos, de formas diferentes (ver também no especial Mil Cidades, na matéria "Gente Saindo Pelo Ladrão").

(Capa: Josh Kirby/ Ace Books).

A Órbita em Ziguezague, a única das três que foi publicada no Brasil, apresenta alguns elementos que poderiam configurá-la como uma distopia. Existe uma empresa gigantesca, a Gottschalk, cujo principal objetivo é vender armas para as populações de brancos e negros para que eles se matarem em seu ódio racista incontrolável. As armas fazem parte do dia a dia, e uma família típica muda de armas como antigamente mudavam de carro.
Existe um confronto entre dois psicólogos que seguem teorias opostas; um deles, Mogschack, dirige o Instituto Ginsberg e tem a intenção de internar toda a população de Nova York – o que até parece parte do enredo de O Alienista, de Machado de Assis. Na própria Gottschalk, os sócios mais jovens têm ideias de transformar o mundo numa guerra entre indivíduos, introduzindo no mercado armamentos que possibilitariam a uma pessoa destruir toda uma cidade.
Brunner também apresenta uma sociedade excessivamente computadorizada, a ponto de ninguém mais conseguir tomar qualquer decisão séria sem uma consulta prévia ao computador. O outro psicólogo a história, Conroy, faz referência ao que ele chama de “socialização da paranoia”, que atinge um ponto tal que tudo é feito a partir da assinatura de contratos; ninguém faz nada, lê nada, pede ou dá alguma coisa sem que tenha um contrato que lhe garanta que não será espoliado de alguma forma.
É verdade que existem algumas críticas ao livro, em particular pelo fato de seguir o conceito de que o mundo atingirá um ponto em que o excesso de população provocará problemas insolúveis, ou quase isso. E também à utilização das técnicas narrativas utilizadas por John dos Passos; mas, aqui, elas realmente funcionam, e o livro é uma beleza.


THX 1138 (THX 1138, 1971)
Direção de George Lucas.

Robert Duvall e Maggie McOmie (American Zoetrope/ Warner Bros.).

O filme foi o primeiro longa-metragem de George Lucas, baseado em seu curta-metragem Electronic Labyrinth: THX-1138 4EB (1967), feito quando ele ainda era um estudante na UCLA, e tem Robert Duvall como o personagem central, THX, e as presenças de Donald Pleasance e Maggie McOmie.
A maioria das críticas concorda que a história em si é bem conhecida da FC, mas que a forma pela qual George Lucas a apresentou é excepcional. A história se passa em um futuro em que as pessoas moram numa cidade subterrânea, com suas vidas programadas por computadores, sendo identificadas por números. A procriação é proibida, a não ser por inseminação artificial, assim como as relações amorosas, mas um casal resolve ter uma relação ilegal. O homem, THX 1138 (Duvall), acaba sendo preso, consegue fugir e é perseguido por policiais robôs. Ele só consegue escapar para o mundo exterior porque o custo operacional da perseguição atinge o limite programado e os robôs recebem ordens para retornar.
Para Phil Hardy, o filme oferece uma visão sombria do futuro, parecida com a de 1984. “Poucos detalhes do filme de Lucas”, disse Hardy, “são originais – em Fantasias de 1980 (Just Imagine, 1930), por exemplo, números substituíram nomes – mas a aparência do filme é maravilhosa. Com sua câmera móvel, que raramente se aproxima em close-up no perturbador casulo branco estéril de túneis subterrâneos, e um mínimo de cenários, Lucas nos apresenta um retrato do futuro deprimente e pessimista”.
John Brosnan, em The Science Fiction Encyclopedia, diz algo semelhante. “É uma velha e familiar história para os fãs de FC, mas Lucas apresenta seu pesadelo distópico com brilho. (...) THX 1138 é visualmente impressionante ainda que de forma alguma luxuoso, com um senso de estilo econômico. (...) THX 1138 é uma pequena obra-prima”.
Adam Roberts diz que, limitado por um pequeno orçamento, Lucas conseguiu produzir “um artefato visual muito interessante. A visão de atores calvos vestidos de branco, movendo-se por corredores brancos e salas brancas, todos um tanto superexpostos, cria um elemento visual muito mais sofisticado que aquilo que o filme faz em termos de sua história derivativa, cujo humanismo, em última análise, é medíocre”.
O contraste final do filme, quando THX finalmente sobe para a superfície do planeta, também é sensacional, com o mundo explodindo em cores, depois da vida branca nos subterrâneos.


ZARDOZ (Zardoz, 1974)
Direção de John Boorman.

(John Boorman Productions/ 20th Century Fox).

Sean Connery e Charlotte Rampling são os intérpretes centrais do filme de Boorman, que teve defensores e críticos na época de seu lançamento, mas que acabou se tornando um cult e um dos preferidos entre os fãs de FC.
A história situa-se no ano 2293, após um cataclismo que aniquilou grande parte do planeta. Os sobreviventes estão divididos basicamente em dois grupos, um deles vivendo dentro do Vortex, um espaço separado do resto do mundo por um campo de força e no qual as pessoas se tornaram imortais; no grupo de humanos vivendo fora do Vortex destacam-se os brutais, exterminadores ferozes que mantêm o nível populacional baixo.
Os imortais, apesar de sua vida tranquila, passam a sofrer de uma apatia crônica, em alguns casos refletindo-se em uma doença física que faz as pessoas ficarem praticamente paralisadas, movendo-se tão lentamente que parecem estar paradas; ao mesmo tempo, alguns dos imortais desejam a morte como forma de sair de seu marasmo.
Connery interpreta Zed, um dos exterminadores, que consegue penetrar no Vortex ao se esconder na gigantesca cabeça voadora do “deus” Zardoz, que de tempos em tempos surge entre os selvagens.

Zed (Sean Connery) sendo analisado por Consuella (Charlotte Rampling) e May (Sara Kestelman).

John Brosnan e Peter Nicholls (em The Science Fiction Encyclopedia) dizem que o filme é autoindulgente e que Boorman apresenta ideias antigas como se tivessem sido recém-inventadas, o que tem um certo charme bobo. Também entendem que o filme tem uma vivacidade visual, em grande parte graças ao diretor de fotografia, Geoffrey Unsworth, mas lhe falta profundidade.

 

Sean Connery, Charlotte Rampling, Sara Kestelman e John Alderton.

Já Phil Hardy tem um, ponto de vista bem diferente. “Inspirado tanto por seu interesse em magia (ao qual, posteriormente, Boorman daria rédeas soltas em Excalubur, 1981), quanto em ficção científica”, diz Hardy, “Zardoz, como o magnífico trabalho anterior do diretor, À Queima-Roupa (Point Blank, 1967), é um filme que destrói o gênero ao qual pertence para recriá-lo”. Assim, se de um ponto de vista é um filme convencional, por outro lado “Boorman empreende uma reflexão filosófica na qual liberdade e morte estão entrelaçadas, e a ciência (que quebra esse elo ao tornar a vida eterna possível) representa a falta de liberdade, em contraste com a magia (pela qual Connery tem acesso ao sistema de suporte de vida dos ‘eternos’, que ele, então, destrói). Consequentemente, quando Connery chega ao Vortex ele encontra uma comunidade cujos membros estão ansiosos pela morte, que eles veem como salvação. Se as duas linhas do filme nunca se equilibram completamente, a tentativa continua sendo impressionante”. Phil Hardy é outro crítico que também faz referência ao sensacional trabalho de fotografia de Unsworth.


OS DESPOSSUÍDOS (The Dispossessed, 1974)
Ursula K. Le Guin.

(Capa: Pedro Inoue).

Um clássico da FC, vencedor dos prêmios Hugo, Nebula e Locus. Apresenta os mundos vizinhos de Anarres e Urrás, o primeiro anarquista, o segundo capitalista. Inicialmente, Anarres pode ser visto como uma utopia anarquista, porém enfrenta muitos problemas, como racionamentos, mas prossegue tentando construir uma sociedade igualitária, com poucos milhões de habitantes, colonos que foram expulsos de Urrás. Neste, a água é abundante e o planeta é repleto de pessoas, uma sociedade caótica e competitiva. Os habitantes dos dois planetas quase não têm contato, ainda que mantenham um sistema de troca de mercadorias, mas eles se detestam.
Um importante cientista de Anarres resolve visitar Urrás, convidado por uma universidade devido aos impressionantes trabalhos realizados na área da física teórica, decidido também a derrubar os “muros” entre os dois povos. Quando entra em contato com o povo de Urrás, percebe a distância entre eles, não só nos costumes, mas na base do pensamento de cada um.

                                                                                                                                                          (Capa: Danilo Ducak/ HarperPrism).

No entanto, Le Guin intercala os capítulos com a narração em Urrás e com a narração da vida do cientista em Anarres, contando o que o levou a partir para Urrás e mostrando que a sociedade anarquista, na qual o dinheiro não existe e as pessoas simplesmente pegam aquilo de que precisam, não era tão perfeita quanto ele imaginava em seus sonhos de criança, apresentando igualmente uma estrutura de poder, mais sutil, mas nem por isso menos castradora.
Em Anarres começa a solidificar-se uma sociedade excessivamente estagnada na qual qualquer nova ideia ou conceito revolucionário é afastado das considerações principais. Apesar de não existir um poder eleito, ele existe de fato, e tão cruel quanto um poder efetivado pelo voto. Ao mesmo tempo, em Urrás o cientista percebe que tudo o que desejam dele, na verdade, é comprar suas noções para construir naves espaciais que possam atravessar o espaço em velocidade instantânea.
A autora apresenta Urrás dividida basicamente em dois blocos, numa alusão óbvia à divisão do mundo em capitalismo e comunismo, além de um terceiro país dirigido ditatorialmente por militares, com o apoio dos capitalistas, e abalado por uma revolução, sustentada pelos comunistas.

(Capa: Chris Moore/ Millennium - Orion).

O cientista, Shevek, é invadido por sentimentos contraditórios, uma vez que percebe que, para dar prosseguimento às suas teorias, necessita do contato com outras inteligências, ao mesmo tempo em que sua educação e cultura veem isso como uma traição. Mas quanto mais entra em contato com as bases do pensamento anarquista, mais percebe o quanto seu povo está se afastando dele.
Adam Roberts diz que Os Despossuídos “(...) continua sendo uma das análises mais maduras e inteligentes do impulso utópico. (...) A circularidade faz parte da visão da novela. Le Guin evita dicotomias simplistas e, influenciada por uma perspectiva taoísta do universo, aspira a um sutil equilíbrio de abordagens”.

 


BRAZIL, O FILME (Brazil, 1985)
Direção de Terry Gilliam.
(ver o especial Mil Cidades, na matéria Cidades Dominadas)


A HISTÓRIA DA AIA (The Handmaid’s Tale, 1985)
Margaret Atwood.
(ver o especial FC e Religião, na matéria Religião e Controle)


CIDADE DAS SOMBRAS (Dark City, 1997)
Direção de Alex Proyas.
(ver o especial Mil Cidades, na matéria Cidades Dominadas)


O MENSAGEIRO (The Postman, 1997)
Direção de Kevin Costner.
(ver o especial O Fim do Mundo, na matéria O que Fazer Depois do Fim do Mundo)


EQUILIBRIUM (Equilibrium, 2002)
Direção de Kurt Wimmer.

(Dimension Films/ Blue Tulip Productions).

Numa época em que pipocavam filmes e livros distópicos voltados para o público jovem, Equilibrium tenta atingir um público mais adulto, mas não foi muito bem recebido pela crítica, que entendeu que sua história básica era uma releitura de 1984 e de Fahrenheit 451. Também não foi lá essas coisas nas bilheterias, mas existe algum exagero em criticar a produção. Talvez só tenha alguma semelhança com Fahrenheit 451 no sentido de que todo tipo de arte é evitado na sociedade apresentada.
A história se passa na cidade-estado Libria, após uma guerra mundial que levou à criação de uma sociedade fortemente dominada por uma classe sacerdotal que tem como função básica manter a sociedade afastada das emoções, consideradas as causas das guerras em geral. Para que essa situação seja obtida, os cidadãos da cidade recebem uma dose diária de uma droga que os mantêm pacíficos, equilibrados, o que não impede que o estado continue a agir de forma fascista, com tolerância zero com relação a qualquer manifestação emocional, o que inclui todo tipo de arte.
Christian Bale interpreta um sacerdote, na verdade um agente do governo cuja missão é manter o status quo e forçar os cidadãos a seguir as diretrizes do estado. Existe um grupo rebelde, como em quase toda história distópica, e ocorre também a conversão de Bale, o que o coloca em choque diretor com seus superiores e sua participação na luta pela derrocada do governo totalitário.
Um dos aspectos mais comentados do filme foram as lutas apresentadas, com os sacerdotes treinados em uma técnica fictícia, mas esse é apenas o aspecto de ação da obra. O visual da cidade de Libria também foi bem pensado, com uma arquitetura pesada, com prédios imensos e escuros, com o filme produzido em cores escuras, como se tudo fosse cinza.
Se não chega a figurar entre os grandes momentos do gênero, certamente é um dos bons filmes de FC de sua época.