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COLOCANDO A LEITURA EM DIA: TRÊS GUERRAS DA FICÇÃO CIENTÍFICA

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autorGilberto Schoereder
publicado porGilberto Schoereder
data04/03/2019
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Leituras um tanto atrasadas de Guerra do Velho, Justiça Ancilar e O Problema dos Três Corpos.

 

Os três livros citados acima são considerados entre o que a ficção científica produziu de melhor nos últimos anos, recebendo ou sendo nomeados para os principais prêmios do gênero. E, por algum motivo que desconheço completamente, só recentemente resolvi conhecê-los.
Pode ter a ver com minhas preferências temáticas; as histórias envolvendo guerras e batalhas com terrestres e/ou alienígenas nunca estiveram entre minhas preferidas, apesar de serem extremamente populares, em particular no cinema. Claro que existem as exceções, como Guerra Sem Fim (The Forever War, 1974), de Joe Haldeman, mas acho que fiquei bastante marcado pelo impacto negativo de Tropas Estelares (Starship Troopers, 1959), de Robert A. Heinlein, livro reverenciado por muitos fãs e escritores do gênero, mas que vejo como uma obra tenebrosa.
 

Para começar, Guerra do Velho (Old Man’s War, 2005), de John Scalzi, seu livro de estreia, indicado ao Prêmio Hugo, e publicado pela Editora Aleph em 2016. Curiosamente, o próprio John Scalzi afirmou que deve muito do seu livro a Tropas Estelares de Heinlein, inclusive na forma pela qual compôs seus personagens e, é claro, pelo ambiente militar no qual os personagens se movem. O livro de Heinlein chegou a ser premiado com o Hugo em 1960, o que é simplesmente inacreditável, considerando-se que concorreu com, entre outros, As Sereias de Titã (The Sirens of Titan, 1959), de Kurt Vonnegut. Mas as diferenças entre Heinlein e Scalzi são enormes.
De fato, ele desenvolve os diálogos “da forma como as pessoas falam”, como alguns críticos ressaltaram, mas a aproximação ao tema da guerra é totalmente distinta daquela proposta por Heinlein. A começar pela forma pela qual as pessoas são recrutadas. Na sociedade descrita em Tropas Estelares, só eram considerados cidadãos aqueles que se alistavam para a guerra contra os insetões nojentos que ameaçavam o planeta.
Em Guerra do Velho, as pessoas ganham uma sobrevida e nova oportunidade. Aos 65 anos de idade, as pessoas podem fornecer uma amostra de DNA e se inscrever nas Forças de Defesa Colonial, de modo que, aos 75 anos, podem se juntar aos militares humanos que estão espalhados pela galáxia. Depois de serem transportados para uma base estacionada na órbita da Terra, e tem suas mentes, de alguma forma, transportadas para novos corpos, modificados por meio de engenharia genética, melhorados, mais fortes, mais rápidos, com pele verde, olhos semelhantes aos de gato, sangue artificial e uma interface colocada no cérebro que permite a comunicação mental imediata com outros membros da equipe.
A história segue a transformação de John Perry, que havia se inscrito com sua esposa, aos 65 anos; aos 75, a esposa faleceu e ele resolve ir sozinho para as Forças. De recruta, ele passa a ser uma figura importante nos combates que se seguem em diferentes planetas, uma vez que diversas raças alienígenas estão competindo com os terrestres para ampliar seus territórios coloniais.
Sem querer ser repetitivo, mas o livro de Scalzi é muuuuito melhor do que a baboseira fascista produzida por Heinlein, e traz discussões interessantes sobre os limites de ser humano, as dificuldades de adaptação a uma vida inteiramente nova e praticamente imortal, além de apresentar raças alienígenas bem interessantes, com motivações variadas que os humanos precisam entender.
Scalzi ainda escreveu outros livros na série como As Brigadas Fantasma (The Ghost Brigades, 2006), também publicado no Brasil pela Editora Aleph. A série teve sequência com The Last Colony (2007), Zoe’s Tale (2008), The Human Division (2013) e The End of All Things (2015).
O livro ia ser um filme da Paramount; depois, uma série do SyFy Channel; a partir de 2017, a Netflix adquiriu os direitos de filmagens e, até onde se sabe, vai produzir um filme.


E temos Justiça Ancilar (Ancillary Justice, 2013), de Ann Leckie. Como Scalzi, é seu livro de estreia, e ela chegou metendo o pé na porta, vencendo os prêmios Hugo, Nebula, Locus, Arthur C. Clarke e BSFA (British Science Fiction Association). E como se tornou comum nos tempos atuais, é o primeiro de ma trilogia que teve sequência com Ancillary Sword (2014) e Ancillary Mercy (2015).
Esse livro é cheio de novidades e algumas maravilhas. Primeiro, a narração é feita pela personagem Breq, membro do Império Radch, no qual se fala um idioma que não tem pronomes com gênero definido. Assim, a autora escreveu a maior parte do livro flexionando as palavras apenas no feminino. Na “Nota dos editores” que abre o livro, é apresentada uma explicação da própria autora: “O uso de ‘ela’ foi uma convenção de tradução – o idioma radchaai não apenas não utiliza pronomes com gêneros para se referir a pessoas (aliás, muitos idiomas reais não utilizam), mas gênero não é relevante para esse povo”.
O resultado é excelente, dando à leitura mais uma profundidade de interpretação, somando-se aos temas interessantes apresentados como o da inteligência artificial, passando pelos meandros da política interna do Império e dos relacionamentos com as demais culturas que ele vai conquistando. E, como no livro anteriormente citado, de John Scalzi, também discute até que ponto um ser pode ser considerado humano.
O Império Radch tem um histórico de conquistas que parece ser imbatível, utilizando-se de naves inteligentes e, muitas vezes, de extrema violência para conquistar os povos com os quais entra em contato. Mais do que isso, mantém uma espécie de depósito de corpos dos povos conquistados que, eventualmente, podem ser reutilizados para se transformarem nos ancilares, ou seja, seres que são uma mistura de humanos com inteligência artificial, conectados à nave na qual servem e funcionando como uma entidade única, capaz de estar em muitos lugares ao mesmo tempo.
Quando inicia sua narrativa, Breq, uma ancilar servindo à bordo da nave Justiça de Toren, é a única sobrevivente de seu grupo de ancilares, após a nave ter sido destruída. A partir daí, sua história vai sendo reconstruída, no passado e no presente, com suas ações movidas pelo desejo de reencontrar a Senhora do Radch, a governante do Império, utilizando milhares de diferentes corpos sincronizados, e vingar-se, uma vez que entende ser ela a responsável pela destruição de suas outras partes. Paralelamente a isso, a própria Senhora do Radch está dividida, com corpos diferentes dela seguindo políticas próprias e opostas.
Um livro excelente.


E chegamos a O Problema dos Três Corpos (The Three-Body Problem, 2008), de Cixin Liu, que só foi traduzido para o inglês em 2014, sendo nomeado para o Prêmio Nebula e, no ano seguinte, vencendo o Prêmio Hugo. Também é o primeiro de uma trilogia; o segundo, já publicado no Brasil, é A Floresta Sombria (The Dark Forest, 2008); o terceiro, Death’s End (2010), deve ser publicado por aqui ainda em 2019.
Essa é uma guerra bem diferente, uma vez que começa a ser travada entre a Terra e o planeta Trissolaris, que se encontra a anos-luz de distância de nós, e cujas naves só poderão chegar aqui em 450 anos, viajando a uma velocidade equivalente a 1 centésimo da velocidade da luz.
O interesse de Trissolaris é despertado por uma mensagem enviada da Terra, utilizando o Sol como uma espécie de ampliador de sinal, e chega aos extraterrestres em boa hora, uma vez que eles estão enfrentando problemas que significarão a destruição do planeta, e eles precisam de um novo lugar para viver.
A forma como essa trama se compõe é tão interessante quanto suas implicações, iniciando nos anos 1960, na China, no momento em que o país está em meio à Revolução Cultural, e os cientistas, assim como quaisquer intelectuais, estão passando por imensas dificuldades, quando não sendo aprisionados ou assassinados.
Um dos temas centrais, o contato ou tentativas de contato com civilizações extraterrestres, é também um tema central em muitas das histórias de ficção científica, além de ser um procedimento que durante algum tempo foi bastante discutido no meio científico. Até mesmo tornado real, por meio de projetos como o SETI (Search for Extraterrestrial Intelligence), que envolveu o monitoramento de radiações eletromagnéticas à procura de sinais de transmissões vindas de outros planetas; e muitos outros programas que surgiram em todo o planeta. Uma das discussões a respeito disso levantava a possibilidade de que talvez não fosse uma boa ideia dizer a uma civilização cujo modo de pensar desconhecemos totalmente a localização exata do nosso planeta.
E é claro que é exatamente isso que ocorre em O Problema dos Três Corpos, e nem mesmo como uma política científica ou de estado, mas devido a um desejo de vingança e de destruição da raça humana.
O texto que apresenta o livro no site da editora ressalta que a história segue no melhor estilo de Arthur C. Clarke, mas isso não parece ser correto. Clarke, que também era cientista, tinha uma imensa facilidade de transmitir conceitos científicos para leigos, ou seja, para os leitores das histórias de FC que ele escrevia. E nesse ponto reside um dos maiores (ou talvez o único) ponto discutível do livro de Cixin Liu. As passagens em que conceitos científicos são apresentados ou discutidos pelos personagens são quase impenetráveis para aqueles que não têm conhecimentos de física. Eu sei que uma parte dos leitores do gênero procura exatamente por isso, por conceitos que possam ser aplicados coerentemente a uma boa história, mas a forma como eles são apresentados a quem não os conhece pode determinar se o leitor vai largar o livro ou não.
Eu não larguei, porque queria desesperadamente saber o que iria acontecer a seguir. E continuo querendo, de modo que vou ler a sequência e esperar pelo fechamento da série; o terceiro livro deve ser publicado no Brasil em 2019.
Diz-se que a Amazon tentou comprar, ou comprou os direitos da história, para produzir uma série. No entanto, uma produtora chinesa afirmou que ela é quem tinha os direitos. Diz-se que o filme foi realizado, mas não chegou a ser apresentado devido a problemas técnicos. Seja como for, a produção da série ainda não foi definida.

 

GUERRA DO VELHO (Old Man’s War, 2005)
John Scalzi
Editora Aleph (2016)
368 páginas


JUSTIÇA ANCILAR (Ancillary Justice, 2013)
Ann Leckie
Editora Aleph (2018)
384 páginas


O PROBLEMA DOS TRÊS CORPOS (The Three-Body Problem, 2008)
Cixin Liu
Editora Suma de Letras
320 páginas