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NO INÍCIO, ERAM AS ILHAS

ESPECIAIS/VE NA ILHA

autorGilberto Schoereder
publicado porGilberto Schoereder
data04/08/2015
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Tudo começou há milhares de anos e, desde então, as histórias de pessoas isoladas numa ilha se multiplicaram, especialmente nos gêneros de aventura, ficção científica e terror.

FreeImages.com/ Luca Biagiotti

Na ilha, tudo pode acontecer, para o melhor e para o pior.
Isolada do mundo, longe das regras da sociedade, lá pode se desenvolver praticamente qualquer tipo de sociedade, e quaisquer experiências são permitidas, secretas ou nem tanto.


(FreeImages.com/ Luca Biagiotti).

Na ilha são permitidos convívios estranhos entre criaturas de naturezas diferentes; ocorrem transformações, alterações, mutações. Tudo, ou quase tudo é possível, especialmente porque a ilha pode estar em outra dimensão, seguindo outras regras sociais, outras leis da física. Pode estar em outros mares, aqueles trechos de mar pelos quais, desde épocas imemoriais, os navegantes não querem passar.
A ilha pode estar escondida em algum canto do subconsciente. Na verdade, se eu procurasse uma aproximação, digamos, mais psicológica ao tema, poderia até mesmo dizer que a ilha representa uma viagem ao subconsciente, ou que se trata de uma imagem do inconsciente coletivo e, por isso, tem tanta força nas histórias contados pelos humanos, esses seres estranhos.
Mas eu não vou falar. Não vou! Mesmo porque a ilha está à superfície, com a possível exceção de Atlântida, que afundou, e que surgiu novamente do fundo do mar no ridículo filme italiano Os Caçadores de Atlântida.
E já que falei em Atlântida, este é um bom momento para dizer que a fascinação com a ilha não é algo recente. Ela povoa o imaginário humano desde, pelo menos, 350 a.C., quando Platão escreveu os diálogos Timeu e Crítias, nos quais faz a famosa e sempre lembrada referência à existência da ilhona de Atlântida. Mas a verdade é que a ilha já ocupava a imaginação humana antes disso, e Platão talvez tenha sido aquele que conseguiu dar forma definitiva à história – ou o que teve o melhor marketing.
Antes dele, A Epopeia de Gilgamés (no Brasil, publicado pelas editoras Madras e Martins Fontes) já se referia a uma ilha. Gilgamés teria sido o rei de Uruk, na Suméria, por volta do ano 2.700 a.C. Ele passa por uma série de aventuras fantásticas e a obra é considerada por alguns críticos como o início da literatura no mundo, fazendo referência ao dilúvio (antes da Bíblia falar sobre isso) e a um sobrevivente, Pir-napishtim ou Uta-Napistim, que vive numa Ilha Paraíso com sua esposa, e apenas os dois podem viver lá. Gilgamés chega até lá e conversa com ele.

 

A Tempestade – Ato 1, Cena 1 (Estampa de Benjamin Smith, de uma pintura de George Romney, 1797).

No livro The Science Fiction Encyclopedia, David Pringle diz que as ilhas imaginárias têm sido utilizadas em dois tipos de histórias; as que descrevem novas sociedades em cenários convenientemente isolados; e aquelas que exploram a natureza humana em circunstâncias nas quais ela se mostra vulnerável e sem a sustentação da civilização. Pringle apresenta como exemplo do primeiro tipo de história exatamente a de Platão, assim como a não menos famosa Utopia (1516, publicado no Brasil pela Martin Claret e pela Martins Fontes), de Sir Thomas More; o segundo tipo de história tem como exemplos famosos A Tempestade (1611), de Shakespeare (no Brasil, publicado pela Martins Fontes, L&PM e Martin Claret), e Robinson Crusoé (1719), de Daniel Defoe (publicado no Brasil pela Iluminuras, Record, Martin Claret, L&PM). E, é claro, existem todas as conjunções possíveis entre os dois tipos.

 

A Utopia imaginada por Thomas More situa-se numa ilha em algum local próximo à costa da América do Sul, e o nome se tornou uma referência não apenas para as sociedades perfeitas idealizadas por inúmeros escritores modernos de ficção científica, mas também uma palavra usada para definir um ideal fantasioso, impossível de acontecer.
Robinson Crusoé foi um sucesso mundial desde sua primeira edição e, como aconteceu com A Ilha do Tesouro posteriormente, tornou-se uma espécie de referência às histórias semelhantes envolvendo náufragos, situando-se como um dos mais conhecidos clássicos da literatura mundial.
No que diz respeito à utilização de ferramentas criativas, a ilha também funciona como forma de isolamento e confinamento dos personagens, esquema particularmente utilizado pela literatura e cinema de terror e citado com frequência por críticos e teóricos, como é o caso de Tzvetan Todorov em seu Introdução à Literatura Fantástica (Introduction à la littérature fantastique, 1970. Editora Perspectiva, Coleção Debates). Como ocorre em Alien, O Oitavo Passageiro ou em O Iluminado – só para citar dois entre centenas de exemplos conhecido – os personagens não têm opção: têm de encarar o que vem pela frente, e fugir, lutar ou morrer (ou se transformar, mudar, ser transformado em gosma viva, em zumbi sem alma, em herói, vilão e até em cogumelos, acreditem).
David Pringle também afirma que os escritores de ficção científica transferiram o simbolismo da ilha para cenários interplanetários, de modo que os próprios planetas podem ser vistos como ilhas; ou então esses planetas apresentam vastos territórios e mares inexplorados nos quais ilhas podem ser localizadas.
Aqui, não vamos falar desses casos, pois isso estenderia o tema a quase toda a literatura e cinema de ficção científica, mas vez por outra poderão ser citadas ilhas em planetas, conhecidos ou não.