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COLOCANDO A LEITURA EM DIA: DESTA TERRA NADA VAI SOBRAR, A NÃO SER O VENTO QUE SOPRA SOBRE ELA

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autorGilberto Schoereder
publicado porGilberto Schoereder
data21/09/2020
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A distopia de Ignácio de Loyola Brandão mostra uma nação em processo de fragmentação e deterioração, com humor, ironia e imagens arrepiantes.

Por algum motivo desconhecido, só agora resolvi ler Desta terra nada vai sobrar, a não ser o vento que sopra sobre ela, obra de Ignácio de Loyola Brandão publicada no final de 2018. Ela faz parte do que foi chamado de “a trilogia distópica” do autor, que inclui Zero (1975) e Não Verás País Nenhum (1981). E ainda bem que consegui ler antes que o Brasil acabe.
Como a maioria dos bons livros com histórias distópicas, esse também vai ao futuro para falar, em grande parte, sobre o presente, com um humor mordaz e ironia, utilizando elementos de ficção científica e fantasia repletos de imagens simbólicas, narrando o processo de desconstrução de um país e de um povo.
No futuro indeterminado em que se passa a história, o Brasil está definitivamente dividido. São mais de mil partidos e, apesar disso, tudo parece estar contido nos grupos Nós e Eles. A palavra “político” não é mais utilizada, e eles passaram a ser conhecidos como Astutos; da mesma forma, a palavra “fora” também é proibida.
As pessoas são vigiadas 24 horas por dia a partir de aparelhos celulares, câmeras instaladas em todos os lugares possíveis, e em alguns impossíveis. Câmeras com thinking chips capturam até mesmo os pensamentos das pessoas. Como diz o texto, “(...) devices sensibilizadores em cada poste, cada casa, nas bolsas, sapatos e até em camisinhas gravam”. Qualquer construção só é habilitada se for comprovado que dentro de suas paredes foram incluídos os chips que capturam os pensamentos, emoções e vozes.
O ar fede, os mortos são jogados nas ruas e carregados nos expressos Corruptela Pestifera; e eles são muitos, porque a simples proximidade com um político, desculpem, com um Astuto, é o suficiente para contaminar uma pessoa mortalmente.
Nesse ambiente espesso, com a vida transformando-se em uma sucessão de fake news, paranoias e delações, Ignácio de Loyola narra a aventura de Felipe e sua relação deteriorada com Clara, levando-o ao centro do país, se é que ainda existe isso, uma cidade que não consta em qualquer mapa e que, teoricamente, é o local onde ainda vive o Astuto mais corrupto de todos.
O autor utiliza muito bem a ideia das gravações de absolutamente tudo o que acontece para apresentar um mundo em processo de deterioração tão extremo que até mesmo o tempo parece, ou de fato está, andando para trás. Compõe o retrato de uma nação e de uma sociedade praticamente incompreensíveis. Como diz em determinado momento do texto, cientistas do mundo inteiro vieram ao Brasil para estudar nosso povo, e saíram daqui sem conseguir chegar a qualquer conclusão.
Em uma entrevista, Ignácio de Loyola disse que, apesar do tom pessimista, o final do livro indica uma possibilidade otimista. Mas, na verdade, pode não ser bem assim, ou talvez seja uma indicação de que a única solução para os problemas que o futuro enfrenta seja começar tudo de novo, tentar outra vez.
Assim como as manifestações de 2013, quando os protestos não tinham um foco, mas de forma humorística chegavam até a pedir a volta da tomada de dois pinos, o livro é uma metralhadora giratória, porém com mira precisa, atingindo, se não todos, pelo menos a maioria dos pontos que enervam quaisquer pessoas que desejam ter uma vida em sociedade minimamente harmoniosa e equilibrada.
No Guia de Livros deste site, comentei que Não Verás País Nenhum é, provavelmente, o melhor livro do gênero escrito no Brasil. Bom... até aqui. Acho que vou ter de rever essa posição.
Se alguém foi tão desleixado quanto eu e ainda não leu Desta Terra Nada Vai Sobrar, sugiro que leia. Agora.


Desta terra nada vai sobrar, a não ser o vento que sopra sobre ela
Ignácio de Loyola Brandão
Global Editora (2018)
376 páginas