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PIRANESI

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autorGilberto Schoereder
publicado porGilberto Schoereder
data28/11/2021
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O segundo livro de Susanna Clarke é uma obra maravilhosa e aberta a várias interpretações.

Existem livros que se destacam pela quantidade de diferentes interpretações que proporcionam aos leitores, e alguns deles estão entre os melhores de seus gêneros. Piranesi, de Susanna Clarke, certamente se enquadra nessa categoria e já vem sendo considerado por vários críticos como um dos melhores livros de fantasia dos últimos tempos.
É o segundo livro da escritora, que estreou com o sensacional Jonathan Strange & Mr. Norrell, em 2004. Piranesi, ao contrário do livro de estreia, que tinha mais de 800 páginas, traz uma narrativa mais condensada, em pouco mais de 200 páginas. A narração é feita por Piranesi, morador de um local que ele chama de a Casa. O outro morador do local, ele chama de o Outro, pelo menos até obter mais informações sobre seu verdadeiro nome. E, na verdade, Piranesi não é seu verdadeiro nome, mas apenas a forma pela qual o Outro se refere a ele.
A Casa é um local composto por milhares de aposentos, salas, vestíbulos e passagens – talvez, um número infinito deles –, todos repletos de estátuas fantásticas. O outro chama o local de labirinto, mas para Piranesi é seu lar, um local que deve existir desde sempre, e no qual ele está há um tempo indefinido. Ele percorre os salões anotando tudo o que encontra em seus diários, a forma das estátuas, a localização exata de cada salão, e as marés que invadem cada aposento de tempos em tempos. Ele aprendeu a viver no local, a alimentar-se de peixes e algas, a fazer roupas com o que encontra. E é extremamente feliz, satisfeito por ter a companhia do Outro, que ele encontra apenas duas vezes por semana, e apenas por uma hora. Para Piranesi, existem apenas 15 pessoas no mundo; além dele e do Outro, existem 13 esqueletos, aos quais dedica muita atenção e cuidado.
Aos poucos, no entanto, a situação confortável de Piranesi vai se modificando; o Outro o alerta com relação à presença de alguém no local, que Piranesi identifica como sendo a 16ª pessoa no mundo. O Outro diz que 16, como Piranesi o chama, é capaz de fazer com que ele perca a razão, confundindo suas ideias, de modo que, caso encontre 16 em algum dos salões, Piranesi não deve falar com ele ou ouvir o que ele tem a dizer, correndo o risco de enlouquecer.
E é claro que 16 surge, e Piranesi lê a mensagem que ele deixa no chão de um dos salões. A partir daí, ele resolve consultar as entradas mais antigas de seus diários, que ele sequer lembrava de ter escrito, e a verdade sobre a Casa, o Outro, 16, e sobre ele próprio, começa a surgir.
O título do livro, e o nome do personagem, é uma referência ao artista italiano Giovanni Battista Pironesi (1720-1778), que compôs uma série de desenhos intitulados Carceri d’invenzione – prisões imaginárias, em tradução aproximada – mostrando gigantescos ambientes subterrâneos com muitas escadas e passagens. Talvez, o Outro tenha pensado nisso, e Susanna Clarke certamente pensou.
Alguns críticos também ressaltaram a relação entre o livro e algumas passagens de As Crônicas de Nárnia, de C.S. Lewis, assim como a similaridade com "A Parábola da Caverna", de Platão, apresentada em seu livro A República, na qual uma pessoa aprisionada em uma caverna, sem qualquer conhecimento do mundo exterior, forma suas ideias e conceitos apenas a partir das sombras que o mundo exterior projeta no interior da caverna.
A Casa, para Piranesi, é um pouco disso. Ele tem pouco conhecimento de qualquer outra coisa que não seja seu ambiente imediato, apesar de este ser, aparentemente, infinito. As “sombras” projetadas em seu interior podem ser representadas pelas pessoas que ali aparecem de tempos em tempos, com apenas partes de informação sobre um outro mundo. Os diários de Piranesi começam a ajudá-lo a compor uma versão mais completa da “verdade”, e nem sempre ela é muito agradável para ele.
Ainda assim, a sensação que um leitor pode ter ao final da obra, é de que a Casa é maior do que o mundo, mais importante, mais segura e mais acolhedora. A maldade que possa existir na Casa é apenas aquela que é levada para lá pelo mundo exterior.
Susanna Clarke levou 10 anos para escrever seu primeiro livro, e mais 16 anos para publicar o segundo. E valeu a pena esperar.


PIRANESI (Piranesi, 2020)
Susanna Clarke
Editora Morro Branco
232 páginas