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Alterando Philip K. Dick

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autorGilberto Schoereder
publicado porGilberto Schoereder
data14/06/2011
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Mais uma obra de Philip K. Dick é totalmente modificada na adaptação para o cinema.

Andrew Schwartz/ Universal Studios.

Nos anos 1980, um crítico norte-americano cujo nome, desculpem, não me lembro, ao falar sobre ficção científica, dizia que o escritor Philip K. Dick escrevia no ritmo do jazz, enquanto outros escreviam no ritmo do rock. Cadências diferentes.
Talvez isso se deva ao fato de Philip K. Dick trabalhar com ideias e conceitos que não exigiam, na ação da trama, grande dose da chamada adrenalina, de modo que os eventos podiam ser narrados num ritmo mais lento. E Philip K. Dick, ao contrário de muitos autores – em especial atualmente –, não escrevia pensando em transformar seus livros e contos em filmes, sem aquela necessidade de trabalhar com capítulos curtos, com ação alternada e o suspense sendo mantido ao final de cada trecho de texto.
Talvez por isso, até hoje, a melhor e mais sensacional adaptação de uma história do autor para o cinema continue sendo Blade Runner. Claro que tem ação, mas não é a loucura que se vê em tantos filmes do gênero.


David Norris (Damon) é abordado e ameaçado pelo agente supervisor Richardson (John Slattery).

E com essa tendência de “ação a todo custo” nos filmes de ficção científica torna-se ainda mais difícil imaginar o que leva produtores a continuar adaptando histórias do autor para o cinema, se a história em questão precisa ser tão modificada, para interessar um público cada vez mais distante dos filmes com um ritmo, digamos, mais lento?
Uma solução que “encontraram”, me parece, foi a de adaptar contos de Philip K. Dick. Não dá para imaginar, por exemplo, uma adaptação de um de seus livros mais famosos, O Homem do Castelo Alto, com o mesmo ritmo em que foi escrito. Ao adaptar um conto, os produtores e diretores conseguem “adicionar” o ritmo que acham ser adequado, às vezes transformando-o a tal ponto que parece quase irreconhecível. Então, se a história original é tão transformada, para que utilizá-la? Por que não escrever uma história nova? Para essa pergunta não encontrei resposta, ou mesmo quem se dispusesse a tentar responder.
A mais recente adaptação foi com o filme Agentes do Destino (The Adjustment Bureau, 2011), dirigido por George Nolfi, com Matt Damon e Emily Blunt nos papéis centrais. Foi baseado no conto Equipe de Ajuste(The Adjustment Team), publicado em 1954, na revista Orbit Science Fiction (e no Brasil no livro Realidades Adaptadas, Editora Aleph), portanto, nos primeiros anos de sua brilhante carreira. E nesse caso, a adaptação não altera tanto o ritmo, mas o conteúdo.


Norris e Elise (Emily Blunt) têm seu primeiro encontro, num banheiro, selando seus destinos.

O conto original já trabalhava um conceito que iria ser apresentado nas mais variadas formas – e melhor – ao longo de sua carreira: a ideia de que o mundo em que vivemos, e nossas próprias vidas, não são exatamente o que pensamos, o que vemos ou o que imaginamos. Existe uma realidade por trás da realidade aparente, e às vezes conseguimos ter acesso a essa outra realidade. A curta história original lida basicamente com essa ideia, e nada mais. Não apresenta qualquer conceito ligado à religião, ainda que as pessoas que estão alterando a realidade, consertando-a, passem a noção de que são transcendentais, que estão além de nós, que são superiores de alguma forma.
O filme não lida tanto da questão da alteração de nossa realidade, mas das razões pelas quais isso acontece, e envolve diretamente conceitos religiosos; não é por acaso que foi inserido no roteiro um diálogo entre o personagem David Norris (Damon) e um dos “agentes do destino”, Harry (Anthony Mackie), no qual Norris pergunta a ele se eles são anjos, ao que Harry responde que este é um dos nomes pelos quais os humanos os chamam.


Novo encontro com os "agentes do destino", dessa vez numa dimensão além da nossa.

Para se adaptar uma obra de Philip K. Dick da maneira mais próxima ao pensamento original do autor – considerando-se a possibilidade de entrar no aspecto religioso, ou mais propriamente, místico –, seria legal se pensar, antes de mais nada, que ele não seguia o pensamento tradicional cristão, que é o que sobressai no filme Agentes do Destino. As suas histórias sempre seguiram a linha do gnosticismo, imaginando que a Terra é um planeta dominado por uma força, geralmente alienígena, que interfere e altera nossa realidade.
No filme, um novo conceito foi introduzido, e o resultado final foi, ainda que num filme até agradável – e certamente não tão ruim quanto algumas críticas deram a entender –, algo totalmente distante do que deveria ser, alterando a realidade da história do autor e transformando-a numa daquelas histórias do tipo “só o amor vence”, ou “o amor supera todos os obstáculos”, até mesmo um destino traçado por um ser desconhecido e poderoso – provavelmente Deus.
O resultado final é um filme interessante, mas que certamente não é Philip K. Dick.

Fotos: Andrew Schwartz/ Universal Studios.