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UTOPIAS E DISTOPIAS

ESPECIAIS/VE UTOPIAS E DISTOPIAS

autorGilberto Schoereder
publicado porGilberto Schoereder
data17/12/2018
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As histórias de ficção científica descrevendo utopias e distopias certamente estão entre as mais numerosas do gênero, em particular as distopias, que parecem ser mais apropriadas para apresentar críticas às sociedades atuais, exacerbando determinadas condições ou situações, levando aos seus limites.

Retrato de Sir Thomas More (Hans Holbein, 1527).

O termo “utopia” foi criado por Thomas More, no livro Utopia (1516), unindo duas palavras gregas: “ou” (significando “não”); e “topos” (significando “lugar”). Ou seja, um “não-lugar”, um local ou sociedade que não existe, mas que é apresentada em detalhes. Com o tempo, a palavra passou a ser associada a uma sociedade ideal que, ainda que não exista, pode existir. E, muitas vezes, a um ideal de sociedade inatingível.
Em The Science Fiction Encyclopedia, Brian Stableford disse que a palavra se coloca, de forma ambígua, entre “eutopia” (significando um “lugar melhor”) e “outopia” (não-lugar). A distopia seria simplesmente o oposto da utopia, ou seja, um lugar ruim, uma sociedade opressora e, segundo várias fontes, foi utilizada pela primeira vez como o antônimo de utopia em 1868, em um discurso de John Stuart Mill no Parlamento inglês. Stableford disse que, apesar do discurso de Mill ser considerado nesse caso, provavelmente o uso recente do termo se origina do livro Quest for Utopia (1952), de Glenn Negley e J. Max Patrick.


                                                                                                                       (Anchor Books).

Outro termo oposto a utopia também é cacotopia (com a palavra grega “cacos” significando “ruim” ou “mal intencionado”), proposto pelo filósofo e jurista inglês Jeremy Bentham em 1818, e também preferido por Anthony Burgess, autor do clássico distópico A Laranja Mecânica (A Clockwork Orange, 1962).
Stableford entende que o mito da utopia é algo muito antigo, relacionado aos mitos de origem religiosa a respeito do Paraíso ou da Terra Prometida, e também ao folclore relacionado às ilhas imaginárias, de sonhos, lugares sagrados ou abençoados. No entanto, ele diz, as histórias utópicas situam-se em oposição a esses locais no sentido de que são apresentadas como situações a serem alcançadas pelos esforços das pessoas e não como um tipo de premiação futura transcendente devido a uma vida virtuosa.

Mapa de Utopia, de Abraham Ortelius (c. 1595).

Segundo Stableford e David Langford (The Science Fiction Encyclopedia), também pode ser considerado que todas as utopias são ficção científica no sentido de que são exercícios hipotéticos em sociologia e política científica. Alternativamente, também pode ser considerado que apenas se qualificam como ficção científica as utopias que incorporam alguma noção de avanço científico. Claro que essas considerações dependem de como cada um define a ficção científica.

                                                                                                         (Souvenir Press).

Os autores lembram que um argumento interessante foi apresentado pelo historiador Frank E. Manuel (1910-2003) na antologia Utopias and Utopian Thought (1966). Segundo ele, uma mudança significativa no pensamento utópico ocorreu quando os escritores deixaram de falar sobre um lugar melhor (eutopia) e passaram a falar sobre uma época melhor (euchronia), a partir de noções de progresso histórico e social. Assim, quando isso ocorreu, as utopias deixaram de ser construções imaginárias com as quais a sociedade contemporânea pudesse ser comparada e começaram a ser exposições especulativas sobre possibilidades futuras reais. Esse poderia ser considerado o momento em que a literatura utópica adquiriu uma natureza conceitualmente similar à da ficção científica. Para Stableford, uma vez que se considere o termo eucronia, as distopias surgem como oposição a este termo, e não às utopias, ou seja, apresentando histórias que apresentam um quadro negativo do futuro, a partir das mais variadas extrapolações.
Stableford e Langford consideram que “Na medida em que cresce a esperança de um futuro melhor, o medo do desapontamento inevitavelmente também cresce, e quando qualquer visão de uma futura utopia incorpora um manifesto para ação ou crença política, oponentes dessa ação ou crença irão, inevitavelmente, procurar mostrar que suas consequências não são utópicas, mas terríveis”.
Para os estudiosos que entendem que a ficção científica é anterior ao século 19, a relação é mais antiga. Adam Roberts, autor de A Verdadeira História da Ficção Científica, é um desses estudiosos, e em seu livro, recentemente publicado no Brasil (Ed. Seoman), no “Prefácio à primeira edição (2006)”, define sua ideia do que é FC como três formas concebidas de maneira ampla: “histórias de viagem pelo espaço (para outros mundos, planetas, estrelas), histórias de viagem pelo tempo (para o passado ou para o futuro) e histórias de tecnologias imaginárias (maquinários estranhos, robôs, computadores, ciborgues e cibercultura). Há uma quarta forma, a ficção utópica, que os críticos de ficção científica com frequência incluem em qualquer definição razoável da forma. Minha premissa neste estudo é que a ficção utópica seja na verdade ficção científica, embora tome como ponto de partida a filosofia e a teoria social em vez de itens de uma hipotética tecnologia ou destinos inteiramente novos.”

No livro The Visual Encyclopedia of Science Fiction, o escritor John Brunner lembra que na maior parte do século 20 as histórias com “avisos terríveis” eram bem mais numerosas do que as utopias idealistas ou didáticas, mas que as utopias tiveram um pequeno renascimento nos anos 1960 com histórias como Walden II – Uma Sociedade do Futuro (Walden Two, 1948. E.P.U.), do psicólogo B.F. Skinner, e The Harrad Experiment (1966), de Robert Rimmer, que também foi adaptado para o cinema em 1973.
Brunner entende que quando considera “o futuro” como o cenário para uma história, o escritor pode proceder essencialmente de três modos, e um deles consiste em imaginar que, se aplicarmos determinado conhecimento, podemos esperar que o mundo se transforme de uma determinada maneira. E esse é o caminho mais curto possível para tentar influenciar os eventos, e é também o poder do escritor. Ele considera que essa tentativa de influenciar é, obviamente, muito mais antiga do que escrever, uma vez que tentar influenciar outra pessoa a fazer algo que ela não havia pensado antes foi, provavelmente, o segundo uso para o qual as palavras foram criadas.
Brunner continua, dizendo que, em períodos de otimismo e expansão, as histórias que têm a intenção de influenciar o pensamento popular tendem a ser didáticas e explicativas. Ele cita o livro Daqui a Cem Anos (Looking Backward, 1887. Editora Record), de Edward Bellamy, cujo tom lhe lembra o de um conferencista do final do século 19. Mesmo tendo o universo à sua disposição para “brincar”, um escritor não consegue evitar a influência de seu meio ambiente.
Na mesma enciclopédia, no verbete “Utopias and Nightmares”, o texto diz que, entre os muitos mundos estranhos retratados pela ficção científica, alguns dos menos convincentes são aqueles que, aparentemente, atingiram um estado de perfeição no qual os habitantes vivem num estado de feliz harmonia com suas famílias e vizinhos, e não têm falta de coisa alguma. “Visto que o conflito é necessário para a ficção de entretenimento”, segue o texto, “qualquer história situada num ambiente tão improvável logo perde o interesse”. Segundo o ponto de vista apresentado no texto em questão, mais interessantes são as histórias situadas num mundo bem menos confortável no qual as pessoas estão prontas para uma revolta contra governos opressores ou ameaçadas por uma catástrofe iminente. E, de fato, em algumas histórias de FC é possível até mesmo perceber uma mudança no tom ao longo do texto, ou seja, o que inicia sendo apresentado como um estado utópico logo se revela ser o seu oposto.

Xilogravura de Ambrosius Holbein para a edição de 1518 de Utopia.

Na ficção científica moderna, ou seja, a partir de H.G. Wells e Jules Verne, e mais especialmente a partir do século 20, talvez até seja mais apropriado considerar o argumento de Frank E. Manuel exposto anteriormente e que se refere a uma “época melhor”, ou eucronia. Brian Stableford diz que sempre há motivo suficiente para imaginar um lugar melhor em algum local da Terra, mas que imaginar lugares piores é simplesmente sem propósito; assim, as histórias mais recentes imaginam “épocas” melhores. Por outro lado, se o mito da utopia está relacionado a mitos de natureza religiosa, como Stableford propôs, nada impede de se argumentar que os “lugares piores” imaginados também estejam relacionados aos mesmos mitos; afinal, as religiões estão repletas de “lugares piores” que se contrapõem aos “lugares melhores”.
Em todo caso, parece que as histórias utópicas realmente não se prestam muito ao tipo de ação e enredos propostos pela ficção científica por, basicamente, excluírem o conflito. As histórias utópicas tradicionais são apresentadas quase sempre como descrições dos “lugares melhores”, como contraponto à sociedade do momento em que a história foi escrita. Adam Roberts disse que “Alguns críticos preferem excluir utopias de uma discussão da FC sob o argumento de que a extrapolação utópica tende para a sátira; o que significa dizer: a utopia tem de ser satírica na medida em que tira sua força do contraste implícito entre a sociedade ideal, que está sendo descrita, e o mundo imperfeito no qual o autor/autora e os leitores de fato vivem.”
Como dito anteriormente, em seu livro A Verdadeira História da Ficção Científica, Adam Roberts considera as histórias utópicas como ficção científica, entendendo que se trata de “Uma forma de extrapolação imaginativa importante para o desenvolvimento da ficção científica (...)”. Entre aqueles críticos que não consideram as utopias como ficção científica, ele cita Darko Suvin, que só considera a utopia como ficção científica quando ela “não está baseada em essência no sociopolítico, mas em outros princípios, digamos biológicos ou tecnológicos, radicalmente diferentes”.
Roberts também lembra o ensaio de Raymond Williams, “Utopia e Ficção Científica”, publicado no livro Cultura e Materialismo (Culture and Materialism, 2005. Editora Unesp), no qual ele diz que existem “(...) muitas conexões próximas e evidentes entre a ficção científica e a ficção utópica, mas nem uma das duas, em um exame mais profundo, é uma modalidade simples, e as relações entre ambas são extremamente complexas. Assim”, continua Raymond, “se analisarmos a ficção que foi agrupada como utópica, podemos distinguir quatro tipos: (a) o paraíso, no qual uma vida mais feliz é descrita como simplesmente existente em outro lugar; (b) o mundo alterado externamente, no qual um novo tipo de vida torna-se possível graças a um acontecimento natural inesperado; (c) a transformação almejada, na qual um novo tipo de vida é alcançado pelo esforço humana; (d) a transformação tecnológica, na qual um novo tipo de vida torna-se viável graças a uma descoberta técnica.” Williams considera que esses tipos frequentemente se sobrepõem uns aos outros, em particular com uma confusão frequente entre (c) e (d). O ensaio vai mais longe e é interessante de ler para quem quer se aprofundar nas discussões sobre o tema.

Nas matérias seguintes vamos ler sobre as primeiras utopias, e bastante sobre as distopias, uma vez que elas parecem prevalecer na ficção científica mais recente, em particular nas histórias do século 21 voltadas para o público que vem sendo chamado de “jovens adultos”.