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Guerra no Céu e na Terra

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autorGilberto Schoereder
publicado porGilberto Schoereder
data01/01/2006
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Uma revisão de algumas obras de ficção que se estendem de forma criativa e interessante sobre o tema do confronto entre o Bem e o Mal, visto como algo que ocorre não apenas numa dimensão distante da nossa, mas também dentro dos seres humanos.
Guerra no Céu e na Terra

Uma revisão de algumas obras de ficção que se estendem de forma criativa e interessante sobre o tema do confronto entre o Bem e o Mal, visto como algo que ocorre não apenas numa dimensão distante da nossa, mas também dentro dos seres humanos.

Gilberto Schoereder

Assim na Terra como no Céu. Assim nos livros (e telas) como na vida real. Seja por coincidência, seja por acaso, ou simplesmente porque o assunto me atrai mesmo, ultimamente tenho assistido e lido obras que se referem, de formas variadas, a um confronto entre o Bem e o Mal, a uma guerra entre as facções do Céu e de um outro local qualquer que alguns poderiam até mesmo chamar de Inferno, mas que deve ser algo bem diferente do que imaginamos.
Em particular, chamaram minha atenção a trilogia Fronteiras do Universo (Ed. Objetiva), de Philip Pullman – composta pelos livros A Bússola Dourada, A Faca Sutil e A Luneta Âmbar –, o extinto seriado Millennium, que comecei a rever em DVD (Fox Film), a série Battlestar Galactica, exibida no canal TNT, e a série de livros A Torre Negra (Ed. Objetiva), de Stephen King.
É verdade que se trata de um tema que pode ser estendido a grande parte da produção de ficção científica, terror e fantasia – a religião e o misticismo representam importante aspecto desses gêneros, quando não é o aspecto central.
A trilogia de Bill Pullman já foi publicada no Brasil há algum tempo, mas não teve a repercussão que mereceria. O autor se inspirou nos textos de William Blake e no Paraíso Perdido, de Milton, para compor sua história que envolve Terras paralelas, viagens entre esses mundos e um confronto entre o Bem e o Mal; no entanto, as facções em choque não são tão facilmente identificáveis.
Pullman toma como ponto de partida da narrativa uma Terra em que a Inquisição teve mais força e se estendeu por mais tempo do que na nossa, de modo que muito da pesquisa científica ainda se encontra nas mãos da Igreja e de suas ramificações políticas. Um grupo dissidente está pretendendo simplesmente entrar em guerra com o Céu. Houve uma época em que o Céu era governado pela Autoridade, o criador do universo; mas, no momento, ele está sob o controle do Regente, mais radical que a Autoridade – ou Deus, que já está velhinho –, e que pode tornar a vida nesta Terra ainda mais difícil, com o retorno dos tempos mais duros da Inquisição.
Alguns anjos estão do lado dos dissidentes, outros continuam apoiando o Regente; os mais variados tipos de seres se juntam a uma ou outra facção, e este é apenas um dos aspectos da história, centrada na jovem Lyra e seu amigo Will, vindo da nossa Terra, que terão papel fundamental na trama.


O sensacional seriado Millennium, criado por Chris Carter – o mesmo do mais famoso Arquivo X – segue por uma linha parecida, ainda que com um clima muito mais pesado. A série durou três temporadas, entre 1996 e 1999, antes de ser cancelada devido a motivos que os próprios produtores não souberam muito bem quais foram, mas que pode envolver uma queda nos índice de audiência. Não teve uma reapresentação recente na TV, mas foi lançado em DVD, e vale a pena conhecer.
As histórias centram-se no personagem Frank Black (Lance Henriksen), ex-agente do FBI, que tem uma capacidade única de se colocar no papel de assassinos e criminosos violentos e, assim, resolver os casos. Ele é procurado pelo Grupo Millennium, formado por ex-agentes para ajudar o FBI nos casos mais cabeludos, e acaba se juntando a eles.
Com o passar do tempo, as histórias vão definindo os reais motivos do Grupo Millennium, que já existe há mais de mil anos, e que envolvem profecias relativas ao Armagedom, ao Final dos Tempos. O problema é que Frank Black não consegue definir quais são as verdadeiras intenções da organização: salvar a humanidade quando o eventual Juízo Final chegar ou provocar esse Juízo Final por meio de atividades muitas vezes nebulosas. Ele nem mesmo sabe se os demônios e outras criaturas que encontra em suas investigações têm algo a ver com o fim do mundo, ou se é algo próprio da humanidade.
As referências à luta entre o Bem e o Mal que ocorre na Terra são das mais interessantes já vistas na TV. Num dos episódios (Um Quarto Sem Vista, da segunda temporada), uma mulher que rapta jovens é o próprio demônio, e Frank Black consegue ver isso, literalmente. Tudo o que essa mulher-demônio deseja é que os jovens sejam comuns, medíocres, que desistam de ser especiais, de achar que têm alguma chance de serem algo mais do que medianos na vida. Assim, ser medíocre é desistir do "conhecimento", é ser parte do Mal. Mesmo quando usa o humor, como no episódio Demônios – em que quatro demônios conversam numa lanchonete –, a série consegue introduzir noções interessantes a respeito do Mal na vida comum das pessoas, no dia a dia. Um dos demônios diz que as pessoas vão passar um terço de suas vidas num lugar que detestam, fazendo coisas que não querem, tudo para ganhar algum dinheiro. "Já vi punições mais leves no Inferno", conclui um deles. Os demônios estão chateados porque as coisas não são mais como antigamente; o pecado virou rotina, não tem mais criatividade, e eles, os demônios, têm cada vez menos trabalho, porque os seres humanos estão fazendo o trabalho por si mesmos.

Referências místicas e religiosas são comuns na série de ficção científica Battlestar Galactica. Trata-se de uma refilmagem do seriado clássico com o mesmo título, apresentado em 1978 e 1979, com efeitos especiais muito melhores do que os do original e uma história mais complexa e bem mais interessante.
Tudo começa quando os cylons (ou cilons, ou ainda cilônios, dependendo da tradução) atacam as colônias humanas, destroçando a civilização. Os cylons são robôs construídos pelos próprios humanos, e que já tinham sido expulsos numa guerra anterior, mas que se reagruparam e reorganizaram. Apenas um pequeno número de humanos sobrevive e consegue fugir em naves espaciais, lideradas pela nave de guerra Galactica.
As colônias são em número de 12 – o que, para alguns, pode lembrar os doze signos do zodíaco; para outros, uma referência às tribos perdidas de Israel – e os sobreviventes partem em busca de uma suposta 13ª colônia, a Terra, onde poderiam se estabelecer e se proteger dos cylons, que continuam perseguindo os humanos pelo universo afora.
Um dos pontos interessantes da história é que os humanos das 12 colônias acreditam em diversos deuses, como os antigos pagãos, e os cylons – que conseguiram desenvolver modelos com a aparência, pensamento e comportamento humano, para se infiltrar entre eles – acreditam num Deus único. Muito do confronto que ocorre entre os modelos humanos dos cylons e os próprios humanos se dá no campo religioso, como se aqueles que foram criados retornassem numa cruzada contra seus criadores.
Os que assistiram ao seriado original sabem que, ao final, a frota humana consegue chegar à Terra, e descobrimos que eles chegam à Terra de nossos dias, estabelecendo uma relação com aqueles conceitos da arqueologia fantástica, ou alternativa, segundo os quais, no passado longínquo do planeta, existiu uma ou mais civilizações desenvolvidas; os terrestres teriam se lançado ao espaço, conseguindo estabelecer colônias em outros sistemas solares e, com o tempo, essa memória se apagou. Na nova série, conseguiram fazer um final diferente, muito interessante, com os fugitivos dando início à moderna civilização terrestre.


Para alguns, a série de livros A Torre Negra é a melhor e mais complexa criação de Stephen King, o que bem pode ser verdadeiro. São sete volumes, que começaram a ser publicados em 1982 e se estenderam até 2004: O Pistoleiro, A Escolha dos Três, As Terras Devastadas, Mago e Vidro, Os Lobos de Calla, A Canção de Susannah, A Torre Negra.
Quem conhece o trabalho de Stephen King já sabe que o confronto entre o Bem e o Mal é uma constante em suas histórias – como de resto em quase toda a literatura fantástica. Mas em A Torre Negra ele assume proporções assombrosas, míticas, e pode representar não apenas o fim do planeta, mas de toda a vida no universo.
O personagem central é Roland Deschain de Gilead, o último pistoleiro de uma Terra paralela, cujo objetivo final, e obsessivo, é alcançar a Torre Negra, o centro de todos os universos. Como a história de King tem relação com as lendas arturianas, pode-se entender a busca de Roland como a procura pelo Graal, um caminho do qual ele jamais se desviará; e para percorrê-lo ele precisa de ajuda, que encontra em pessoas de outras Terras, inclusive da nossa, e de períodos de tempo variados. Como em Fronteiras do Universo, existem várias passagens entre os universos paralelos.
A definição do Bem e do Mal, e da guerra que tem de ser travada, é mais clara aqui do que, por exemplo, em Millennium, mas ao mesmo tempo esse confronto também se estende aos personagens, que não são totalmente "bandidos" ou "mocinhos", como nos antigos filmes de faroeste; aliás, outra das inúmeras referências que inspiraram a obra.
Os mais fanáticos por Stephen King vão se deliciar em encontrar referências ao universo de A Torre Negra em outras obras do autor, como em O Talismã, A Casa Negra, A Coisa, A Dança da Morte, A Hora do Vampiro, Insônia e outros.